5/04/2009

Alguma coisa está fora da ordem


A primeira manifestação das várias já feitas esse ano em Paris, homem mostra revolta contra os valores da republica francesa.

Foto e texto por Gabi Laurentiis


Nas ruas de Paris a impressão é de calma. As manifestações e ocupações que acontecem desde o começo do ano não parecem abalar a paz dos franceses. Uma cidade pacata, regrada, normativa. Vemos no centro de Paris uma juventude pacífica, ou quase apática. Mas qual juventude? Não a da periferia. Os jovens do banlieu na sua maioria são filhos de imigrantes de países africanos. Importante: todas as pessoas nascidas em território francês são consideradas cidadãos franceses. E mais, não se pode nunca dizer os negros, os africanos ou os árabes: na França, todo mundo é (?) igual. Guardemos essa informação.
A Republica Francesa é celebrada a todo tempo. Prédios públicos, casas ou esquinas comuns trazem o símbolo máximo do orgulho da nação: a bandeira que representa igualdade, liberdade e fraternidade. Alias é comum ver essas três palavras escritas em diversos lugares. Não se pode compreender minimamente a sociedade francesa, sem entender o significado que essas palavras exercem. Quando falamos em liberdade e igualdade é mais fácil: todos os cidadãos são livres e iguais, não pretendo aqui discutir a fundo a não verdade dessa afirmação. Mas o que me chama atenção é a questão da fraternidade: acredito que reside nessa palavra a grande (porém sutil) particularidade francesa. Marx em seus escritos sobre as lutas de classe na França de 1848 à 1850 explica: “A frase que correspondia a imaginária abolição das relações entre classes era fraternité, a fraternidade universal, o amor entre irmãos. Esta cômoda abstração dos antagonismos de classe, esta conciliação sentimental dos interesses de classe contraditórios, esta visionária elevação acima da luta de classes, a fraternité era na verdade a palavra-chave da revolução de Fevereiro. As classes estavam divididas por um simples mal-entendido.” Voltemos a “igualdade” de todos os franceses. Ou melhor, ao sentimento de fraternidade que é tão aclamado por aqui. Não se pode falar nos negros ou nos africanos, todos são irmãos, todos os são franceses. Mas de fato são eles, os filhos de imigrantes, os primeiros a serem demitidos com a crise. São eles que moram na cité, nos bairros difíceis como eles chamam aqui. São eles que não entram nas melhores universidades, nas grands écoles. É para conter a revolta deles que o presidente manda centenas de policias para rua, é o rap deles que não toca na radio. Portanto são eles que não pertencem a grande “irmandade” francesa. A fraternidade, como igualdade e a liberdade, não existem nem na França nem em lugar nenhum do mundo. A musica Nique le système,- Explodir (ou fuder) com o Sistema - dos rappers Sniper, Tandem, Eben e Baccar é uma prova disso. Falando da França eles cantam:

Ela tenta queimar nossas raízes
Todos os anos, todos os meses, todos os dias

São nossos irmãos que ela assassina
Ela nos enrola, ela mente
Ela blefa, ela nos fascina

É a inimigo do gueto, um dia ruim se desenha

Oh babilônia, teu sistema foi concebido para nos enterrar mais cedo

Mas existem soldados, verdadeiros guerreiros no gueto.

E a fraternidade onde fica?
Entre eles, por que como cantam são seus “irmãos que ela assassina”.


Acabo por aqui contando de uma noite que voltava pra casa. Em Paris, existem ônibus que funcionam durante toda a noite, e se os franceses já parecem apáticos durante o dia, na madrugada o silêncio nesses ônibus é total. Um dia desses, entro num deles e sento em um dos bancos de trás. Ao meu lado vários jovens entre 20 e 25 anos, jovens da periferia. Como sei? As roupas e o jeito de falar que são muito característicos. Fumavam maconha, faziam rap e mais importante: eles riam de uma maneira que não se vê muitos franceses fazendo. Logo após um senhor negro entra no ônibus, conversa com eles, pergunta se estou bem e ri também. No breve trajeto trocamos algumas palavras. Desço com a confirmação de que diante da apatia francesa só eles, os imigrantes, os africanos, os negros, os árabes podem mudar a sociedade francesa e acabar com o silencio e a calma da linda Paris.

Gabi Laurentiis é estudante de Ciências Socias. Atualmente reside e estuda em Paris onde, esporadicamente, vai escrever essa coluna.

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