10/25/2009

Minha recusa a banalidade - duas ou três palavras sobre a violência urbana

50 mortos. O saldo da Guerra civil no Rio de Janeiro. Fora aquelas mortes não contabilizadas. Fora um helicóptero destruído. Fora os policiais que deixam uma vítima agonizar por quase uma hora antes de morrer. Os casos são incontáveis. As experiências, inenarráveis. O que acontece nos becos e ruelas das grandes cidades do Brasil (e aqui o Rio de Janeiro e São Paulo ganham destaque) fazem parte de um roteiro brutal e insano, de um cotidiano que está permeado pelo medo e pela insegurança.

Muito foi e está sendo dito sobre as raízes destas questões: crime organizado, tráfico de drogas, pobreza, o abismo entre as classes sociais, as decisões administrativas. Estes são pontos absolutamente profundos e pertinentes, que demandam uma quantidade absurda de dados e pesquisa. Eu faço votos que os cientistas sociais brasileiro realmente estejam atentos a esta questão, e que concentrem esforços em dar algumas resposta a esta equação que até agora parece impossível de resolver.


Mas aqui eu vou tentar apenas escrever umas duas linhas sobre uma fragmento desta crônica. Nesta última terça, dia 20, o corpo de um homem cravado de balas foi largado numa rua perto do Morro dos Macacos no Rio de Janeiro. A cena causava espanto e curiosidade. O corpo já mostrava sinais de decomposição. As pessoas que ali passavam olhavam o homem; e ele assim permaneceu. O evento continuou até as autoridades cariocas resolverem que o circo devia ser fechado, e então retirassem o homem dali.

O assombro da cena está não na sua violência e terror, mas sim, na sua banalidade.

Hannah Arendt (umas das mais importantes intelectuais do século XX) escreveu um livro sob o título “Eichmann em Jerusalém”. Na obra, a autora apresenta sua visão do julgamento de Adolf Eichmann, notório criminoso de guerra nazista e um dos principais atores do genocídio perpetrado aos judeus durante a Segunda Guerra Mundial. Em 1961, ao ser encontrado e preso, Eichmann é julgado em Jerusalém por uma corte especial e então, em sua defesa, narra seu papel como um dos principais responsáveis pela arquitetura da logística dos campos de concentração com absoluta normalidade.

Arendt aponta a “banalidade” de Eichmann na medida em que este aparece apenas como uma peça de uma grande engrenagem. Um autômato que cumpria ordens. Arendt coloca o terror do holocausto, dos assassinatos em massa, da mecânica do extermínio, dentro de uma lógica de absoluta e fútil normalidade.

Duas são as considerações que quero colocar a respeito da relevância do texto de Arendt sobre nossa realidade, e em especial, sobre o caso que destaquei. A primeira está na banalidade de nossa violência cotidiana. A banalidade de “nosso” mal está no fato de que nem cenas de absoluto terror tem a capacidade de nos revoltar. Pelo contrário: elas se apresentam enquanto um fato pitoresco. Nos causam estranhamento e espanto. Mas não mais o terror. O cotidiano brutal narrado nos jornais – e que pode ser acompanhado ao vivo das janelas de casas e carros – dinamitou nossa sensibilidade.

A segunda ponderação é uma questão de postura. Arendt viu Eichmann como uma “peça” de um “sistema”. Dentro daquele contexto, Eichmann estaria desprovido de sua individualidade, e , obedecendo àquela “normalidade”, os atores sociais acabariam sendo sugados para uma espiral onde suas ações não são percebidas em sua totalidade. A alienação, neste sentido, se não tira a responsabilidade total dos atores sociais, ao menos atenua sua culpa.

Me coloco no campo contrário. Vejo aqui uma questão muito menos analítica, e muito mais de “postura” prática. Todos os atores sociais tem escolhas. E estas escolhas sempre estão condicionadas. Em maior ou menor medida, essa “banalidade” da violência que explode na televisão e nos jornais é interpretada, reinventada e reproduzida por todos nós. A mim, ela me choca, me revolta. Não posso permitir que a exceção se torne a regra.

O corpo daquele homem morto no carrinho de supermercado deve ser colocado no seu devido lugar: como o resultado de uma guerra civil brutal que está nos consumindo enquanto sociedade e enquanto seres morais. E este é o fim do poço.

3 comentários:

  1. Um corpo baleado em um carrinho de supermercado, abandonado no meio da rua. Sem dúvidas, uma das coisas mais brutais que já vi. Não podemos encarar isso, como algo normal ou aceitavel.

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  2. Não vou comentar sobre o tema. Vão chover comentários à respeito. Vou comentar da estrutura dele. A estrutura do seu texto está ótima. Coesa e coerente. além do mais você sempre consegue fugir do Trivial: foge dos tão costumeiros parágrafos de declaração, de definição, utilizando sequencias de frases nominais, dando uma cara só sua aos seus textos. Adoro lê-los. Parabéns!

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  3. Seria a crise de atuação da sociedade civil (burguesa, por excelência)? =)

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