10/28/2009

Um pouco sobre a configuração espacial da cidade de São Paulo.

Como nasceram as periferias.



Este texto faz uma analise histórica, política e sociológica a respeito dos conflitos urbanos ocorridos em São Paulo, no final do século XIX e inicio do século XX, mostrando o expansionismo da lógica capitalista de organização da cidade, que resultou na constituição do que hoje chamamos de periferias. Através desta análise, talvez possamos entender melhor como se configura o que chamamos hoje de favelas.

A cidade de São Paulo se torna o pólo da produção de mercadorias e do comércio, a partir do momento em que se inicia a transição do modelo de produção com mão de obra escrava, para o modelo de produção com mão de obra assalariada. O reflexo desta transição se deu de várias formas: econômica, político-institucional, social, etc. Mas esta análise parte do ponto de vista da crise do espaço urbano, mapeando desta forma a constituição de uma nova ordem social.

Na relação, escravo – proprietário, onde a dominação se dava de forma clara e os limites entre as duas classes eram muito bem definidas, o escravo era visto como propriedade do senhor dono das terras, sendo assim, este era responsável por manter a sua “máquina” de produção funcionando. Para isto, era necessário manter este corpo-máquina com uma dose mínima de alimentação, tentar livrá-los de doenças e fornecer a eles uma forma de moradia. O escravo morava na fazenda do senhor, e não se caracterizava como um indivíduo, só conseguindo alcançar este status, quando se tornava membro de um quilombo ou quando conseguia comprar sua carta de alforria.

Com a abolição, os escravos foram jogados a sua própria sorte. A partir daí, surgiu à necessidade de se utilizar mão de obra assalariada, o trabalhador livre. Mas o trabalhador livre, até então era uma minoria nas cidades, então foi preciso construir este arquétipo, fisicamente e ideologicamente. Se não era mais possível – fazer trabalhar – com a força da chibata, a nova ordem deveria se encarregar de produzir este trabalhador que tivesse somente a sua força de trabalho para ser vendida. Nem o caipira (considerado preguiçoso), nem o negro ex-escravo se transformaram imediatamente neste novo trabalhador livre. Sendo assim, os fazendeiros contrataram o imigrante europeu, pois as políticas da época eram vantajosas neste sentido. O governo da província pagava as passagens destes imigrantes. Por outro lado à idéia de se utilizar mão de obra “civilizada” atraia muito os fazendeiros, pois não era possível romper repentinamente com a carga ético-política da escravidão. Neste contexto, o embate entre “barbárie versus civilização” ainda se fazia presente na elite dominante da Primeira República Brasileira (1889 – 1930).

Neste contexto, pela primeira vez no Brasil, a grande maioria dos trabalhadores (agora assalariados), passa a não mais habitar a propriedade do patrão. A nova ordem social implica numa re-definição do espaço social muito bem delimitada, onde cada classe sabe onde pode e onde não pode transitar. Os trabalhadores são empurrados para as margens das ferrovias, onde a maioria das fábricas se concentrava, e os seus bairros eram geralmente constituídos de inúmeros cortiços, zonas pantanosas e inundáveis, quase sempre com esgoto a céu aberto em uma paisagem que se contaminava também com as chaminés das fábricas. Enquanto os patrões habitavam as colinas arborizadas, em alamedas retilíneas e palacetes bem construídos.

Uma das diferenças mais significativas nestes dois universos, era a forma como os moradores se relacionavam com o espaço público. Nas zonas pobres, a maioria dos espaços, eram públicos ou semi-públicos, botequins, campos de futebol e a própria distribuição espacial dos cortiços, que geralmente eram constituídos de cômodos-leitos, banheiros e tanques de lavar roupa para o uso de todos os moradores, e um corredor ou pátio central. Por outro lado, Nas áreas ricas, os cômodos eram devidamente separados e funcionalmente organizados, não há muitas áreas de convivência coletiva e as mansões se fecham em muros e grades que separam a íntima vida social. Este processo de separação e diferenciação de cada bairro faz com que estes bairros tornem-se mais do que lugares no espaço da cidade, eles assumem as características dos grupos sociais que os ocupam e se identificam com eles. É como um efeito psicogeográfico, onde as características de um lugar organizado conscientemente ou não influenciam diretamente sobre o comportamento dos indivíduos que o habitam.

Todas estas transformações visavam estabelecer uma ordem dominante no contexto urbano-social, e se esta ordem se tornasse homogênea isto de certo modo garantiria a reprodução do modelo político, social e econômico vigente. Mas a forma de organização dos bairros proletários se contrapunha diretamente a está ordem, pois produzia outras formas de sociabilidade que valorizavam muito mais o espaço público do que o espaço privado e misturavam praticadas sociais distintas com a mistura de negros e imigrantes europeus (na maioria italianos, espanhóis e portugueses). O poder urbano por sua vez tentava reprimir ou transformar tudo que se diferenciasse da ordem social vigente, a ordem da classe dominante. A homogeneidade absoluta desta ordem era favorável à manutenção deste poder dominante, portanto tudo aquilo que diferia desta era considerado desvio e transformava-se imediatamente em objeto de intervenção. Esta intervenção se dá através de um discurso que estabelece o modelo ideal de cidade e cidadão, e através de intervenções diretas na vida destes cidadãos. Faz-se presente uma construção e estigmatização de determinados grupos sociais e estes passaram a ser considerados não adequados e conseqüentemente suas ações passaram a ser reprovada e assim se dá à eficácia do discurso. Um discurso de construção da anormalidade, que se assemelha muito com as idéias do filósofo francês Michel Foucault, onde há a consolidação de uma complexa rede de instituições de disciplinarização, e de mecanismos de vigilância, de papéis e exigências sociais que para manter o bom funcionamento da ordem vigente, constroem uma figura monstro-humano ou anormal, que precisa ser devidamente encarcerada e disciplinada. Foucault em sua análise desvela a formação do conceito de anormalidade decalcado na criança, e que por isso, foi alvo da educação e da tutela do Estado. Está idéia de Foucault, reflete também em outras parcelas sociais, e como vimos acima à disputa urbana do inicio do século XX, carrega alguns de seus reflexos.

Uma das formas de se combater os cortiços, eram as chamadas “vilas higiênicas”, que eram vilas que se diferenciavam dos cortiços por conter no interior de cada unidade as áreas de cozinhar, lavar, banhar e defecar. E cada habitação possuía mais de um cômodo contendo mais separações que o cortiço.
Os habitantes das vilas, não se diferenciavam em muito dos habitantes dos cortiços, eles também eram trabalhadores das fábricas, mas a partir da construção deste novo tipo de habitação, nasce uma separação ideológica entre estes moradores, os “cortiçados” e “moradores de vila”. Os cortiçados passam a ser caracterizados como “perigosos marginais”, enquanto os moradores de vila, são chamados de “pobres trabalhadores”. De um lado a miséria perigosa, baderneira, ilegal; do outro a miséria útil, explorada e permitida. As vilas eram totalmente submetidas ao tempo-trabalho, pois na maioria das vezes, eram construídas nos arredores das fábricas, portanto, a mesma disciplina da fábrica, vale para a vida privada.
A partir daí, inicia-se o processo de remodelação da cidade, onde proprietários, interessados na valorização de algumas regiões, juntamente com ações de especulação imobiliária. São construídas pontes, viadutos e praças redesenhando completamente alguns setores da cidade.

Deste modo, podemos traçar a história do surgimento da periferia nas grandes metrópoles como São Paulo, principalmente porque este conflito e estas contradições sociais ainda se fazem presentes hoje. A cultura dos cortiços deixou suas marcas nas favelas, e mesmo em escala menor, os cortiços se fazem presentes nas grandes cidades. Portanto a luta pelo espaço, é mais atual do que nunca hoje.


Um comentário:

  1. Viny,
    tem um documentário interessante sobre o assunto que se chama "Pelas Marginais", copio pra vc se vc quiser. É sobre a trajetória da Marginal Pinheiros e como a especulação imobiliária altera a constituição e permanência das favelas em determinadas áreas da cidade.
    Bom pra continuar a discussão...
    =)
    um abraço
    Renata

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