12/16/2009

“Um dia, a música (...)”


Ele deu sinal; o ônibus parou. Tinha uns trocados no bolso. Contou: um, dois. Uns trocados só. Moedas perdidas no bolso da bolsa. Deu na mão do cobrador de quem nem viu o rosto. O cobrador via televisão no seu celular: a novela ou o jornal. Quem se importa? O ônibus colocou-se de novo em movimento. A chuva caia lá fora e as pessoas chacoalhavam no corredor estreito. Era manhã. O menino se esforçava para segurar no balaustre. A menina xeretava o livro do vizinho: Anna Karenina - talvez? Ou....? As janelas estavam fechadas e uma sensação de sufocamento tomou conta dele. Lá atrás, viu um banco vazio. Um presente. Se esgueirou, pediu licença. Todos. Nenhum. Personagens.

Desculpe - disse ele à senhora que pela mão segurava a criança banguela e camiseta amarelada de suór.

O ônibus seguiu seu trajeto. E sempre seguia. Avenida Cerro Corá, indo para a Heitor Penteado. O seu caminho era só esse. De segunda à sexta, desconhecia o anterior, e o posterior. Para ele, a realidade daquelas pessoas estava apenas naquele curto trajeto. Ele se sentou. Lembrou-se, e pegou o iPod. Pensou numa música e apertou o play. Ia saltar quando chegasse o metrô.

“Hope there's someone
Who'll take care of me
When I die, will I go
Hope there's someone
Who'll set my heart free
Nice to hold when I'm tired”


De repente, não havia mais ninguém ali. Só a voz de Antony Hegarty. Suave. Frágil. Quase de vidro. Não ouvia I Am A Bird Now de Antony and the Johnsons sempre. E alí, com aquelas pessoas, no coletivo, naquela chuva de quarta-feira, percebeu que tinha medo daquele disco. Que chegava fundo na sua alma. Tinha medo da voz de Hegarthy. Tinha medo de como aquela voz ressoava no seu coração. Chegou próximo a estação do metrô. Lembrou-se de dar o sinal. Tinha que se levantar. Quase não teve coragem. Trocou a faixa:

“I've got my heart
Here in my hands now
I've been searching
For my wings some time”


Tinha que comprar o bilhete. Colocou-se alí, prostrado na fila. Estava molhado e sentia cada músculo de suas costas como se estivessem congelando. O fone incomodava enterrado na orelha. Mudou de ares. No seu ouvido, explodia uma série de sons e barulhos que, num passe de mágica, formavam uma melodia. E a conhecia de cor:

“Everything, everything, everything, everything..
In its right place
In its right place
In its right place
In its right place”


Desceu a escada rolante. Viu-se sozinho diante de um mar de gente. Lembrou-se do pai, já distante:

“Um dia, a música (...)”

Teve rápido devaneio interrompido pelo trem que corria rápido pelo trilho. Uma enxurrada de informações. Pessoas entram, pessoas saem. Pessoas e histórias. Infinitas. Que assim como ele, vagavam como que perdidas num diálogo surdo consigo mesmo. Uma campainha, uma voz metálica.

“That there
That's not me
I go
Where I please
I walk through walls
I float down the Liffey
I'm not here
This isn't happening
I'm not here
I'm not here”


O caminho era curto. Cinco ou seis estações. Ouvia o burburinho. O som desconexo de gente em movimento, de gente falando, de gente. Mas a cinemática da música que estava presente só lhe trazia uma certa nostalgia do desconhecido. Talvez porque a arte seja assim:

Eu ouço a voz de Thom Yorke - disse em voz alta, sem perceber.

Na verdade, ninguém percebeu.
O trem ia seguindo. Uma, duas, três estações. Não contou. A mecânica do cotidiano. Como um relógio, o círculo insano da repetição. Batia os pés o chão acompanhando as batidas que ouvia. De que garoto tratava o disco? Pensou, por alguns segundos nessa pergunta idiota.

A campainha! - pensou.

Levantou-se, e com ele, um leque de acompanhantes visíveis e invisíveis. Incontáveis cabeças, olhos fundos, nenhum sorriso. O metrô naquela hora da manhã é triste. Todos indo ao trabalho. Lembrou fotograficamente da lombada de um livro que leu na faculdade:

“RIESMAN, David. A Multidão Solitária. Editora Perspectiva. São Paulo, 1971”

Aquilo não fazia sentido nenhum naquela hora. Esse era um passado já distante. Pensou no trabalho, repassou algumas tarefas do dia na cabeça. Lembrou-se de comprar aspirina. Mudou de novo a trilha. Lembrou-se do sangue que já escorreu. Toda a dor. Toda a sensação. A agulha. Naquele barulho. Sentiu o ciúmes. Raiva. Sentiu o desejo de desaparecer. Sentiu saudades.
Cantou junto com David Gahan, palavra por palavra:

“Peace will come to me
Peace will come to me

I'm leaving bitterness behind
This time I'm cleaning up my mind
There is no space for the regrets
I will remember to forget

Just look at me
I am walking of incoming
Look at the frequencies of which I vibrate
I'm going to light up the world

Peace will come to me
Peace will come to me

I'm leaving anger in the past
With all the shadows that it caused
There is radar in my heart
I should have trusted from the start

Just look at me
I am a living act of holiness
Giving all the positive virtues that I possess
I'm going to light up the world

Peace will come to me
Just wait and see
Peace will come to me
It's meant to be

Peace will come to me
Just wait and see
Peace will come to me
It's inevitability”


A Chuva caiu. E ele não tinha guarda-chuva.

Para ouvir junto, a playlist na íntegra:


Foto: Thiago Zati

3 comentários:

  1. um comentário acadêmico para o primeiro texto que eu leio, seu, que não tem nada de acadêmico.

    "Sem música, a vida seria um erro." Bigode.

    ResponderExcluir
  2. E agora com palyer!! hahahahahahaha

    ResponderExcluir
  3. The Smiths é a única banda que eu nunca tenho medo de ouvir. nunca mesmo. =)

    ResponderExcluir