4/08/2010

Viagem ao fim da noite/ Morte a Crédito - Louis Ferdinand Céline

Leituras no ônibus a caminho do trabalho



Louis-Ferdinand Céline muitas vezes é precedido de seus pecados. Tendo publicado folhetos anti-semitas durante a ocupação nazi na França, carregou até o fim de seus dias a pecha de ser vergonha pública. No que tange a sua obra, é irrepreensível sua genialidade. Do que li, tudo parece ser carregado em dramáticas tintas auto-biográficas, Morte a crédito e Viagem ao fim da noite são mais do que exemplares comuns de um bom escritor, mas atestados de uma grande literatura. O autor seduz, trás o leitor ao chão, cospe, escarra, peida sem pudores algum, mostrando em meio a escrotidão física, a do caráter, e como podem ser trágicas as relações humanas.
Em Morte a Crédito vemos um jovem Ferdinand que das primeiras páginas nos introduz em tom de lembrança uma infância sofrida. Um garoto coagido por um pai fracassado e uma mãe mártir. A parte dos adjetivos que dei as personagens na frase anterior, o autor não enverniza, não fica polindo a dor e as cicatrizes. Muito pelo contrário, as feridas são abertas, e de uma forma que parece um garoto que arranca a casca nova de um ferimento para ver o sangue, impedindo a cicatrização, e como louco ri disto. O texto é cortado de ironias, de derrotas, de sorrisos, de sarcasmo, numa montanha russa imprevisível. Um outro ponto que me veio nessa leitura, obviamente de minha observação (bem) pessoal, são as semelhanças sutis com Trópico de Câncer de Henry Miller. Fã confesso do autor, reza a lenda que reescreveu partes de seu romance depois de ler as provas de Morte á Crédito. Ao saber disto, me foi difícil não conectar em pensamento as andanças e malandragens da personagem de Céline, com o alter ego de Miller no outro romance.
Viagem ao fim da noite é por sua vez, tida como a obra máxima. A história também tem fortes ares de autobiografia. Um homem só e ciente de suas fraquezas é empurrado pelo destino e covardia de um lado a outro. Mais do que isso, e mais do que uma metáfora de uma existência miserável, Viagem é quase um libelo niilista. Um jovem Céline, agora mais velho do que aquele de Morte a Crédito, se vê no meio da guerra, divagando sem medo e sem pudores sobre todo tipo de canalhice do ser humano. Da Europa para a África, depois para a América, a miséria parece ser pintada como um espectro que o persegue. Existe um sem número de autores que cantaram em verso ou prosa as virtudes do ser humano, uma outra parcela fala de seus des-méritos, Céline está entre esses e faz com olhar clínico e ao que parece, com “conhecimento de causa”
Enquanto rascunho isso num bloco, dentro de um ônibus abafado, vejo a garoa do lado de fora da janela. Estou indo ao trabalho. Olho para um punhado de moradores de rua esperando o café da manhã em frente de um albergue. Quando a porta se abre, uns empurram os outros querendo adentrar e comer antes que os demais. Animalidade? Falta de educação ou sobrevivência em uma situação extrema? Cerca de uma hora e meia antes o mesmo aconteceu no terminal onde peguei esse ônibus. A porta se abre uma porção de gérsons, se vê no direito de se achar mais esperto que a maioria. Céline pode ser um monstro, reconheço seus defeitos e escrotidão, mas junto desse caráter deformado, me pego pensando, que pelo que parece o mundo, mas principalmente o que chamam de “essência” do ser humano, não mudou muito.

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