5/31/2010

Um detalhe


O quarto era pequeno, mas tinha uma janela grande que dava para a avenida. O tempo era aquele cinza bonito, típico de como fica São Paulo no outono. De pé, encostada no parapeito, Paula olhava o dia de chuva que se desenrolava em câmera lenta. No reflexo da janela, lembrou-se da menina que corria nas ruas do Brás quando criança, lembrou-se da padaria da esquina onde comprava doces. Lembrou-se do sorveteiro. Sentiu o gosto de algodão-doce e o cheiro de cigarros e perfume barato que exalavam da roupa do avô. Viu, naquela imagem de sonho, entrar pela porta um pai que nunca vira antes, carregando uma mala grande e lhe dizendo, aos gritos, que precisvam ir embora. Sentiu a mais que presente ausência da mãe, de quem só sabia o nome. Memórias e lembranças.
Uma lágrima escorreu no seu rosto no rosto. Paula limpou-a com a manga da blusa velha que usava para dormir. Respirou fundo e tomou um gole da xícara de café. Como todas as manhãs. Ainda era bem cedo, e a cidade acordava.
O gaveteiro era branco e cheio de ranhuras. Tinha um pequeno puxador dourado, com detalhes em madeira. Ficava encostado num canto da parede, ao lado da cama de solteiro. Dentro, Paula guardava um pequeno caderno preto. Escrevia o que lhe desse na telha, mas tinha o costume de não ler o que rabiscava ali. Podia chamar aquele caderno de diário, mas na verdade, Paula não dava tanta importância ao que escrevia. Achava cliché ter um diário, achava cliché colocar sues fantasmas no papel. Nunca quis ser escritora, nunca teve pretensões artísticas. Mas escrevia. Naquela dia, pegou o lápis preto e desenhou com letra cursiva as primeiras frases que lhe surgiram na cabeça. Mecanicamente encadeou, como sempre, palavras sem sintaxe. Números e letras. Um pequeno código pessoal aleatório.
Outra xícara de café preto. Seguida de mais uma. Olhou para o relógio. Sete horas.
“Preciso sair, vou me atrasar” - pensou, enquanto se levantava. Colocou o bule no fogão. Lembrou dos livros que precisva pegar: Tolstoi, Dostoievski e Puchkin. “Literatura Russa, sala B, quarto andar”. As chaves. O cotidiano reconhecível e repetitivo.
Trancou a porta e colocou a chave no vazo. Sim, ele iria para lá esta noite. Estariam juntos. Fariam amor. A mente de Paula se projetou doze horas a frente. Celso traria pizza e uma garrafa de vinho. Iriam ver televisão deitados na cama. Sentiriam um o corpo do outro no cobertor quente. Um beijo na testa de boa noite. Paula desceu as escadas e correu pelo corredor. Abriu a porta pesada que dava pra rua e viu o letreiro amarelo do ônibus de linha.
Celso pegou o trem em direção ao centro. Já era tarde, quase noite. Desceu na Estação da Luz e ouviu o sino bater sete vezes. Era só pegar o metro. Paula queria pizza, mas só trazia o vinho. “Vou ter que passar na padaria”, pensou, de pé, apertado entre os passageiros. Lembrou-se, de repente, de como conheceu Paula, naquele café da Pinacoteca. Ela tirava foto das putas que frequentavam o Parque da Luz para um trabalho da faculdade. Celso achou engraçado a cena: menina ruiva e de olhos pretos tentando esconder a câmera entra a bolsa e a blusa. Claro, todas as putas sabiam que estavam sendo fotografadas. Faziam até pose, enquanto Paula buscava o melhor ângulo. Rindo para si mesmo, Celso abordou-a para ajudá-la. Paula agradeceu. Primeiro fez-se de desentendida, depois aceitou o convite para o café. Já se passaram 6 meses.
Celso passou na padaria, comprou pães recheados. Já tinha o vinho, faltavam apenas alguns frios. Pagou a conta, atravessou a rua e abriu a porta. A escada era escura, mas eram só dois lances. Teteou os bolsos.
Merda! As chaves! - disse em voz alta.
Imaginou que tivesse as esquecido. No mesmo instante, lembrou-se: estavam no vazo. Agachou meio sem jeito e encontrou o molho. Lentamente, abriu a porta do apartamento. Nunca soube se comportar numa casa que não fosse a sua. Olhou em volta e sabia: as coisas estavam exatamente como Paula havia deixado pela manhã. A xícara, o bule, a janela.
E o caderno preto.
Paula o havia deixado o caderno em cima da mesa. Esqueceu-se dele ali e durante o dia todo. Em nenhum momento, se lembrou dele. Celso viu a capa de couro e as páginas amareladas. Um lápis marcava a última página escrita. Não se conteve. Fechou a porta, sentou-se na mesa e começou a ler.
Vinte minutos depois, Paula abriu a porta sem cerimonia. Celso olhou-a no olho, com o caderno em uma mão, disse:
- “O que é isso?”
- “É um caderno. Porque?”
- “Por nada, por que nunca...” - ele disse, sem muita certeza.
- “Porque é meu. E não achei que lhe fosse interessar”. Paula colocou a bolsa sobre a mesa.
Celso abaixou a cabeça e começou a chorar.
-”Celso?!” - Paula disse num misto de indignação e ternura.
-“Mas por quê? Por quê, Paula!?”
-“Porque o quê?” disse Paula, se aproximando de Celso, olhando-o nos olhos e colocando uma mão no seu rosto.
Celso ficou em silêncio. Longos 15 segundos se passaram. Levantou a cabeça e com voz embargada, disse:
-”Quando vi esse caderno em cima de mesa, vim devassar sua vida: procurar algo que não sabia o que era. Queria um segredo. Depois de correr os olhos por todas estas páginas, chorei não pelo que encontrei, mas sim pelo que não achei. E isso me doeu mais que tudo”.
Paula o olhou nos olhos, e nada mais precisva ser dito: de todas as palavras que ali encadeou, nunca havia escrito nem o seu nome, nem o de Celso.

Clique sem juízo: Thiago Zati

3 comentários:

  1. Conheço este texto. Conheço esta foto. Lindos e perfeitos e amados.

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  2. PS: Eu dei um outro nome pro seu texto. "Ausência"

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  3. Muito bonito!


    (mas, cá entre nós, o Celso é um bundão, hein? hahaha)

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