7/21/2010

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Naquela manhã de domingo, ele sabia. Era o fim. Isabela veio buscar a penteadeira branca, feita a mão pelo bisavô e que foi dada de presente para a esposa. Era a pedra sobre o caixão. Ele gostava da mesa. Sentava ali para ouvir discos, escrever bobagens, trabalhar, ver a janela. Caio, o atual namorado, veio junto. Trouxe o carro do pai, maior para poder levar o móvel.
A xícara de café frio estava em cima da mesa.
A interfone tocou, ele apagou o cigarro na pia da cozinha e atendeu. Ouviu passos no corredor então o barulho da campainha.
“Ele não vai conseguir levar a mesa sozinho” - pensou em voz alta, enquanto destrancava e abria a porta.
O beijo no rosto. Os sorrisos. Palavras vagas.
Ela ainda usava o mesmo perfume. Ele achou aquilo estranho: fazia tempo, mas a casa seria sempre um pouco dela. Caio apertou-lhe a mão e disse:
“Me dá uma mão? Ela parece...”
“Pesada”, ele já se adiantou. “Sim, claro”.
Para evitar meia cerimômia, a mesa já estava na sala e não mais no quarto onde ficou por anos. Era pesada, de madeira maciça, toda pintada de branco. Ele largou o óculos na estante cheia de livros e juntou-se a Caio na tarefa hercúlea de descer dois lances de escada. Isabela em silêncio, se precipitou em reabrir a porta recém fechada.
Nos primeiros passos, Caio percebeu que a tarefa seria mais difícil do que prevera.
“A gente não pode tentar... “, Caio lançou a cartada.
“O elevador? Nem pensar. É difícil levar até a cadeira lá de tão pequeno”.
E assim foi feito: cada um segurando em um dos lados da mesa, esgueirando-se pelo corredor escuro em direção à escada em forma de caracol.
Entre um degrau e outro, Caio iniciou tentou, mais uma vez, uma conversa:
“Não nos vemos desde..”
“O jantar na sua casa. Eu lembro que tinha dito a Isabela que tinha gostado de você” na mesma hora, perguntou a si mesmo porque havia dito aquilo.
“Aquele foi um bom dia” disse Caio, tentando arrumar o óculos que lhe escorregava pelo nariz.
Ele levantou a cabeça e parou. Sabia bem o porque desse comentário; naquele dia caio reencontrou Isabela. Não se viam a tempos. Os comentários, as conversas. Aquilo sempre fez sentido. Entre um pensamento e outro, gritou:
“Cuidado, a porta!”
Caio parou. Com cuidado, colocou a mesa no chão. Se virou, abriu a grande porta de vidro, e a escorou com o peso. Passaram por ali com cuidado e seguiram, devagar, em direção ao carro, que estava estacionado quase junto ao portão de ferro cinza.
“Precisa de ajuda?” Ele disse, já quase se virando e pegando um cigarro.
“Não precisa, Isabella me ajuda a colocá-la dentro do carro” disse Caio, sem olhar no rosto dele, enquanto abria a porta do carro.
Eles se deram um aperto um aperto de mão e se olharam fixamente por alguns segundos. Caio então meteu a mão nos bolsos procurando e parecia caçando o celular. Atendeu virou-se e começou a caminhar.
Ele ficou ali por um minuto talvez. Tragou o cigarro. Sentiu o sabor amargo na garganta. Lembrou-se que precisava almoçar. Respirou fundo. De repente lembrou-se:
“A cadeira! Falta a cadeira!”
Correu. Atravessou a porta de vidro e subiu os dois lances de escada como um raio. Chegou. Abriu a porta.
“Isabela?”
Ela já tinha ido. Colocou mais comida e água para o gato. Na estante, ele logo notou: lá estavam os dois livros do Dostoievski. Ela tinha tirado o primeiro volume de O Arquipélago.
E levou a cadeira.

Clique meu, do expurgo.

3 comentários:

  1. Muito bom. Separação é sempre um bom tema para contos. Já leste Ivana Arruda Leite? Ela tem um conto que eu acho sensacional sobre separação.

    Abraço!

    http://doidivana.wordpress.com/2009/04/30/a-verdadeira-tragedia/

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  2. Este comentário é só pra provar pra você que eu não tenho inveja de você e dos seus ¨dons artísticos¨, hahahhaha.

    O texto ficou muito bom. E eu já tinha dito isto na primeira versão do conto.
    E o fato de eu não gostar a ideia de você escrever ¨contos póstumos¨(HAHAHAHA) não significa que eles são ruins. Eles são excelentes.

    Mas já tem muita gente te falando isso... hahahhaha

    PS: Se eu virar um conto póstumo quebro seu nariz (MACHO GIRL MODE ON).

    PS2: E os créditos da fotógrafa, como é que fica?:P

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  3. Estarei mais atenta ao seu blog para matar a saudade. Jamile freire

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