7/01/2009

Estamira


Estamira é um documentário de narração. Uma oralidade que flui da boca da narradora que dá nome ao filme. Que emerge como que em contorções de sua memória, marcada por tantas feridas da vida. O que ela conta dá um tipo de foco fantástico e alegórico ao que se vê nas imagens. Palavras, filosofias, histórias, aforismos, citações, fundem-se ao ambiente de seu dia a dia. A voz envelhecida, as vezes calma, as vezes gritada, traça falas que pendem entre o agudo da crítica, ao fantasioso mais profundo dos loucos. A voz de Estamira pode ser a voz de qualquer um tido como “insano” ou mentalmente perturnado, que perambula pelas grandes metrópoles. Que se torna paisagem sem ser percebido por aqueles se deixam dopar pelo dia a dia. Ao mesmo tempo sente-se entre suas frases, um tom de sabedoria, como um tipo de xamã, daqueles que transcendem o plano de nossas questões de quotidianas. A voz do “invisível social” que a tudo vê e percebe, e depois profetiza.

Vemos Estamira perambular entre montanhas de lixo e dele tirar sua sobrevivência. O enorme aterro sanitário carioca parece um tipo de paisagem lunar. Impossível não lembrar de “Boca de Lixo” (1992) de Eduardo Coutinho. Mas aqui o foco é outro. Se Coutinho buscava resgatar um tipo de dignidade, um orgulho de ser e de ter uma personalidade, ou ainda apresentar uma série de ambigüidades na ultima ponta da sociedade do consumo, o diretor Marcos Prado está interessado em ouvir. Não se percebe pela montagem, nada mais que uma forma de ouvir Estamira. Ela é quase um arauto, falando quase tudo em tom oracular. Não se busca uma “problemática”, o que não vem a ser um defeito. Nesse ouvido aberto, o diretor transmite respeito. Algo solene de compromisso e cumplicidade entre diretor e personagem. A história é construída não só por quem a narra, mas na interação de quem está lá para ouvi-la e captá-la. Aos poucos aparecem outros personagens. É quando a dualidade loucura/lucidez fica mais complexa, pois a narração de Estamira contradiz a insanidade que lhe apontam. Ela tece comentários profundos e justificativas. Me pergunto, quem mais que o miserável, pode negar a Deus e sua existência, diante da face do próprio?




Marcos Prado vem da fotografia. E esse background fica estampado diante de nossos olhos, de forma magistral. O filme mescla imagens coloridas, com outras em preto e branco. Boa parte dele em um granulado preto, branco, cinzento de variados tons que exalam desesperança. Aliás lindíssimas imagens que se juntam perfeitamente a narração e a espetacular trilha sonora. Urubus em vôo lento, nuvens carregadas, ventos enfurecidos, chuva, corpos humanos magros e não identificáveis na paisagem, decomposição e luta por sobrevivência. O que nas minhas palavras aqui parece ser caótico, na composição áudio-visual do filme está no local certo, na medida. Apesar de seus méritos o filme tem um tom de fetichização da miséria, que de alguma forma me incomoda. Não sei apontar também como fugir a isso. Prado não deve ter tido a intenção de fazer um “filme-denúncia”, mas como um Sebastião Salgado deixou belo o retrato da destruição e da dor. E para além de meu incômodo, é uma vitória. Não é e nunca será um crime, pois cumpre também uma função humanizadora. Faz com que, o que é tido como delírio de outro, pode ser a mais sábia das falas. Que decodifica os sinais de seu mundo e os resignifica. Derrubando as certezas de um mundo tão incerto, que se tem como racional.
Título Original: Estamira
Gênero: Documentário
Tempo de Duração: 115 minutos
Ano de Lançamento (Brasil): 2006
Site Oficial: www.estamira.com.br
Estúdio: Zazen Produções Audiovisuais
Distribuição: Riofilme / Zazen Produções Audiovisuais
Direção: Marcos Prado
Roteiro: Marcos Prado
Produção: Marcos Prado e José Padilha
Música: Décio Rocha
Edição: Tuco

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