8/10/2009

Borges, ou: como descobri meu Aleph


Lembro, como se fosse hoje. Trabalhava no Itaim: era boy de firma de advocacia. Odiava aquilo. Ficar em filas, bancos e cartórios, o dia inteiro. Gostava de duas coisas: dos trajetos que fazia o dia inteiro e dos jornais. Sempre tinha um jornal dando sopa, em algum lugar. Que eu podia pegar, sentar e ler. E assim, antes da internet, tinha acesso às notícias, todos os dias. E também, aos cadernos de cultura, ícones de uma classe média decadente, que consome apenas o que lhe é chancelado por arautos do bom viver, ler, comer, ouvir e ver.

Um dia, num exemplar do Caderno 2 tinha um artigo sobre Jorge Luis Borges. Até aquele instante, este nome não significava absolutamente nada para mim. Eu devia ter uns 15 anos. Soube alí que era argentino; que havia sido bibliotecário; que havia ficado cego; que morrera a pouco. Havia escrito apenas histórias curtas, num gênero conhecido como “fantástico”. De repente, a fotografia que ilustrava a matéria tinha uma história. E aquele olhar, um sentido.

Na mesma página do jornal, mais abaixo, tinha texto completo. Era o conto “O Imortal”, o primeiro do seu “O Aleph”, seu livro mais famoso. A história do manuscrito de Marco Flamínio Rufo me fulminou. A escrita era rápida. Quase livre. Mas de um eruditismo ímpar: Borges puxava sua narrativa pelo rabo, a dobrava do avesso, para depois, recompô-la. E no meio disso tudo estava eu. Atônito. Boquiaberto.

A partir daquele instante, devoro suas histórias sempre que posso. Me sinto humilde diante da magnitude de suas frases curtas. Seu ritmo próprio, suas rimas, suas tramas. Suas quantidade de referências.

Reler os textos de Borges é como caminhar por uma metrópole. Tudo está sempre em decomposição e materialização. Obra inacabada, onde as cores se misturam em nossos próprios olhos. O universo e seu infinito, em uns poucos pares de páginas.

“E assim Daneri descobriu seu Aleph no subsolo de seu porão”, e eu por acaso, descobri o meu: que em seu capricho, se colocou entre as páginas 113 e 114.


Como homenagem, replico abaixo um texto de Borges de que gosto muito.


In memorian J. F. K.


“Essa bala é antiga.

Em 1897 disparou-a contra o presidente do Uruguai um rapaz de Montevidéu, Arredondo, que passara longo tempo sem ver ninguém, para que o soubessem sem cúmplices. Trinta anos antes, o mesmo projétil matou Lincoln, por obra criminosa ou mágica de um ator, que as palavras de Shakespeare tinham transformado em Marco bruto, assassino de César. Em meados do século XVII, a vingança a usou para dar morte a Gustavo Adolfo da Suécia, em meio à pública hecatombe de uma batalha.

Antes, a bala foi outras coisas, porque a transmigração pitagórica não é própria apenas dos homens. Foi o cordão de sede que no oriente recebem os vizires, foi a fuzilaria e as baionetas que destroçaram os defensores do Álamo, foi a lâmina triangular que segou o pescoço de uma rainha, foi os obscuros cravos que atravessaram a carne do Redentor e o lenho da Cruz, foi o veneno que o chefe cartaginês guardava num anel de ferro, foi a serena taça que num entardecer Sócrates bebeu.

No Alvorecer do tempo foi a pedra que Caim atirou em Abel e será muitas coisas que hoje nem sequer imaginamos e que poderão dar fim aos homens e a seu prodigioso e frágil destino”

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