8/31/2009

Comentário (pós?) Moderno: "A Onda" e seu reverso

Semana passada, tirei um dia para ver “A Onda”, filme que conta a história (baseada em um acontecimento real) de um professor de ensino médio alemão que, para ilustrar como se porta um regime autocrata, propõe uma dinâmica de grupo onde simula um sistema similar na sala de aula. O resultado, no filme e na realidade, foi catastrófico. O filme é interessante, pois trata do tema Nazismo dentro de uma perspectiva contemporânea e bastante madura na atual sociedade alemã, bem como a problematização a respeito da relação aluno-professor e os limites éticos e morais desta.



Para ver o filme, chamei alguns alunos. Dou aula no ensino médio, e o tema da Segunda Guerra Mundial é cobrado no currículo básico. Alguns alunos foram e assistiram o filme, e em meio a zona que criaram na sala de cinema, acharam o filme interessante. Viram o conflito e talvez até se colocaram no lugar daqueles que apareciam na tela: um grupo é formado, surge a identidade, a camaradagem. A noção de propósito, o “meaning” na palavra em inglês, emerge. A liderança aponta uma direção. Tudo é possível. Em nome do que está dentro, toda a extemporaneidade é simplesmente descartada. A existência de um é a não existência do outro. A dualidade política tão bem explicitada por Schmitt, Foucault e Agambem.

Saí do cinema e pensei: isso é possível? Um professor, hoje, num país como o Brasil, que teve, como a Alemanha, a experiência com um governo autocrático (de uma maneira bastante diferente, que fique bem claro) teria a possibilidade de criar tal percepção em uma sala de aula? Estes o tomariam por líder, se assumiriam enquanto um grupo único e fechado e se aglomerariam em torno de algumas idéias como união, força e disciplina?

Com esta pergunta, fui a escola disposto a ver qual é que era a real. E no meio do debate com os alunos, percebi como “A Onda” era um filme anacrônico. Jamais aquilo que aconteceu no final de 1968 nos Estados Unidos - e foi recriado na Berlim contemporânea - poderia acontecer. Não poderia, simplesmente, porque a internet mudou a sociedade. E esta resposta também tem sua dualidade, para o bem e para o mal.

O lado positivo, e talvez, o maior ganho no que se refere a educação política, mesmo que esta não seja percebida enquanto tal, é a idéia de autonomia. Os jovens de hoje jamais seguiriam qualquer tipo de liderança de maneira tão simplista: isto porque nada que alguém diga pode soar tão interessante: em nossa sociedade, o “eu” é que possa a ordenar suas próprias prioridades, podendo buscá-las como e quando quiser.

A internet é uma ferramenta mágica, pois ela cria um mundo onde todos criamos conteúdo, e sendo assim, a idéia de “autoridade”, ou seja, aquele poder que cria uma relação de legitimidade, é perdida, ou melhor, pulverizada. Quem é o especialista, o mentor ou o professor? A idéia de autoridade em um ambiente pulverizado transforma todos em iguais. Porém, esta também apresenta seu reverso, onde vemos o fenômeno “bolhas de autoridades” sem conteúdo, que simplesmente alcançam determinado status devido a uma lógica intrínseca ao meio. Este é outro debate.

Mas o argumento central continua inalterado: a “autoridade”, em toda suas instâncias, sofre uma seria incapacidade de penetração devido a descentralização da informação e a possibilidade de criação e ordenamento autonomos. O que importa é que a internet muda as relações que temos com conteúdo e idéias: se antes esperava-se a “autoridade” informar definir e esquadrinhar o que era relevante, bom e correto (e esta autoridade tinha esse poder por ter a informação, cultura e acesso), no mundo de hoje, o acesso e a informação são de todos. Sendo assim, não se precisa mais da “autoridades”, “criticos”ou mesmo “líderes”. Eu não ouço mais rádio comum, onde discjockeys escolhem o que vamos ouvir; as rádios online se adequam ao meu gosto. Lastfm, blip e o gethighnow.com estão aí, fora as ferramentas de RSS, e agora o Twitter, que dá a possibilidade de eu “seguir” coisas do meu interesse para que estas informações venham a mim. A cultura, fator relevante que foi colocado fora da equação perde importância com as ferramentas de busca: sendo a informação múltipla, instrumentos de filtragem permitem, com relativo sucesso, chegar-se ao objetivo proposto, com razoável nível de eficácia.

A outra razão é prima-irmã desta primeira, seu complemento e oposto. Havendo a quase-impossibilidade da criação de uma relação de autoridade nos moldes como apontamos aqui, o que é capaz de convergir para a criação de conhecimento? Como podemos superar a sedução da super-informação e nos ater a temas que mereçam especial atenção? Só uma quantidade absurda de grana e mídia é capaz hoje de criar audiência para algo específico. Mas mesmo esta grana já não parece mais suficiente: passamos cada vez menos tempo diante da televisão, nos apegamos as coisas de maneira cada vez mais superficial e o mundo torna-se cada vez mais rápido e dinâmico. Somos uma sociedade icônica, formada e ordenada por ícones. Mas quem tem todos, não tem nenhum. Michael Jackson foi o Rei do Pop. Provavelmente o último. Quem pode hegemonizar tanto a atenção em um mundo como o nosso? A indústria pop e o cinema estão se reinventando, e se esta indústria não é mais capaz de criar um super-astro, quem pode? Esta perspectiva a principio parece mais que positiva, mas ao mesmo tempo, dá espaço para uma eterna e indivisível mediocridade. Podemos nos acostumar com o pouco, com o raso.



Essa saturação cria um ambiente onde simplesmente a letargia torna-se uma profecia auto-realizável. Se é impossível a relação de “autoridade” nos termos colocados aqui, é também factível o marasmo da superficialidade, que cria apenas espelhos d'água. Ou seja, cada vez mais a idéia da aparência é a tônica, visto que superá-la torna-se dispensável, ou melhor, perigoso. Num mundo que cabe em 140 caracteres, se alongar pode ser uma espécie de suicídio intelectual. Em que medida a superação da noção de autoridade não está também acabando com a idéia da paciência, da minúcia e da atenção? Ao mesmo tempo em que destruímos o deus da “autoridade”, parece que destruímos também nossa capacidade de superar o que a principio não nos seduz, não nos entorpece não nos dá prazer. A idéia de ludismo, da facilidade, aparecem como nosso denominador comum: o que não me traz o que busco de maneira imediata, está fora. O ato de aprender, neste sentido, se torna quase pífio. O prazer contido ali é outro: existe mas está nas entrelinhas. E sendo assim, o mundo, em suas profundas desigualdades, continua fechado, e fadado a uma reprodução que se sustenta pela inércia.

O anacronismo de “A Onda” esta no fato de sermos agora uma sociedade sem líderes, e sem propósito. A idéia de algo que nos torne um, que aponte um caminho foi dinamitada da nossa mentalidade. Porém, ao mesmo tempo, nosso referêncial perdeu-se numa teia infinita e nossos parâmetros parecem nos levar a um processo cada vez maior de alienação. Superá-la requer suor. E quem está disposto a isto agora? Para o bem e para o mal, a idéia da massificação é passado. Assim como o sonho Hippie, esta tudo terminando como em Altmont.

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