9/25/2009

Torrente



Uma xícara de café e um cigarro. Os pensamentos ecoam pelas paredes sem quadros. Ela bate a cinza no cinzeiro que está em cima do criado mudo. No espelho quebrado, vê o gesto de seu braço: a ponta brilhante do cigarro faz um arco no ar.

“Sim, vagalumes!”.

Sorriu para si um riso seco. Ela pára, olha para o teto e respira: ouve os silvos do ar enchendo os pulmões. “Estou ficando doente”.
Uma tragada na bituca, um gole no café frio. Mais uma baforada lenta. O quarto se enche de fumaça. “A janela está fechada”. Todas estão. Suavemente, Ana põe a xícara de café ao lado do cinzeiro. Pega um copo d'água e leva a boca. Molha os lábios, e depois, um gole generoso. O calor é insuportável. Uma gota de suor que lhe escorreu da testa lhe fica presa no canto da boca. Sente o gosto amargo-salgado e cospe no chão sujo do quarto. A televisão está ligada e ela baixa a cabeça em direção a tela. “Qual é o nome deste filme mesmo? Ah sim....”. A sirene da ambulância ecoa na noite sem estrelas: “Maldita insônia”, pensou, apagando o cigarro na madeira nua.
Espremida no canto da cama de casal, só um pequeno espaço lhe resta: perna pede para o chão. O homem grande que está deitado ali não lhe deixa muita alternativa. Ela se espreme, respira fundo e fecha os olhos. A cama se mexe. O copo cai no chão de taco escuro mas não quebra.
Num lampejo, Ana lembra da sua meninice, e da vez que fugiu de casa. “Dez ou doze dias?”, perguntou a si mesmo. Dez ou doze; não lembrava. Mas importava? O que lhe veio na memória foi o doce gosto do perigo. Aos onze anos, conheceu Marco na escola. Brincavam juntos e de maneira pouco inocente, deram ali o primeiro beijo. Um dia, Marco lhe propôs uma pequena aventura. Juntos, seguiram a linha férrea que cortava o bairro. Passaram por construções, vilas e estações. Atravessaram a pequena ponte de concreto que saltava o rio. Ana viu um mundo novo, diferente. Uma semana depois voltaram: a mãe chorava no quarto e o pai esperava sentado na porta da casa. Como sempre, ele não lhe disse uma palavra – aliás, Ana contava nos dedos às vezes que havia conversado com o pai. Do episódio da fuga, até hoje lembra da expressão daquele rosto, da cor amarela da cadeira e do grito da mãe quando ouviu sua voz.
Já um pouco mais velha, foi viajar. Sem dinheiro. Escorrendo suor entre as pernas e bebida lhe pingando dos lábios rosados. Voltou só quando o pai morreu. Chorou, mas só naquele mesmo dia. Por sua causa, amava o desassossego. Alugou um apartamento na cidade. Vivia assim, como que levando: às vezes tinha companhia, outras não.
A garrafa de pinga em cima da mesa, o café, o cigarro.
Sem saber porque, naquela noite Ana, lembrou daquele dia. Os ruídos da noite a incomodavam. desligou a TV. Puxou o lençol para junto do corpo. Virou de lado. Tapou os ouvidos com as mãos.

“A campainha tocou?” se perguntou em silêncio.

Estremeceu da cabeça aos pés. Abriu os olhos e as sensações lhe tomavam todo o corpo. No quarto escuro, as imagens se formavam na fumaça que pairava no ar. Podia ver como se fosse hoje. Como se vivesse novamente aquele momento. Marco estava na porta do apartamento. “Eu estava de ressaca”. Nas mãos do homem, duas malas e um envelope. Ana não o via a uns bons anos, mas ainda o reconheceu. Abriu a porta. Apenas o olhou nos olhos. Todos os homens do mundo desapareceram. Havia apenas Ana, a porta, e Marco. Ana balbuciou algumas palavras.
Mas o homem caiu de joelhos e chorou. Apenas levantou as mãos com o envelope, como uma oferenda. Marco lhe agarrou as pernas. Ana abriu a carta. Um exame. Ele corre os olhos pelas palavras impronunciáveis. Chegando ao final, entendeu. Ele estava condenado. Não ia mais andar. Doença degenerativa. Batata. Ana não sabia o que fazer. Marco entrou sentou no sofá e tropeçava na ordem das palavras. Tremia como uma criança perdida. Ana não entendeu. Num estalido, olhou as malas. Ficou pálida. “Ele quer morar aqui” pensou.

“Ele mora aqui a 18 meses, 4 semanas e 2 dias”, refez as contas de cabeça.

Ana levantou-se. Seu coração era esmagado com a força. Seu estômago doía. Foi tomar um banho, não agüentava mais. Abriu o chuveiro e ascendeu outro cigarro. O ar quente enfumaçou o espelho. Via apenas a silhueta do seu reflexo. Entrou na banheira com a água. Apagou a luz e pegou a bucha. Se esfregava com força. De sair sangue. A água tornou-se de um rosado rubro. Ofegante e sozinha. Uma pausa. Ouvia apenas a disritimia sincopada de sua própria respiração.

“Acabou a água”.

Fechou os olhos e adormeceu.
Era de madrugada ainda. Ana saiu molhada do banho. Nua, caminhou até a cama. Viu o corpo imóvel de Marco. Ele dormia profundamente. “Dopado de remédio”, pensou. Ana segurou a mão grande e fria. Com um joelho sobre a cama, mas ainda de pé, fez com que aquela mão percorresse todo o seu corpo. Deslizou-a por entre os seios. Acariciou os mamilos. Desceu até a boceta.
Ana gemeu alto e desmaiou - misto de prazer e cansaço.

(...)

O despertador apita. 7:00 da manhã. Ela se levanta e vai preparar um café. Não há uma noite que ela não pense a respeito. Ana vai até a porta do quarto. O corpo imóvel de Marco repousa por entre os lençóis azuis encharcados de suor. De repente, uma virada de cabeça, ele olha para ela, com a cabeça, um aceno. Ele se vira sem falar nada.

“Até quando?” - ela pergunta baixinho, enquanto lava a louça.

Um suspiro surdo. Ela baixa a fronte. Olha no relógio e sorri.

Foto por Thiago Zati

Nenhum comentário:

Postar um comentário