1/25/2010

“Bem vindo ao mundo do amanhã” ou como Fahreinheit 451 queimou minha internet


Fahreinheit 451 de Ray Bradbury foi originalmente publicado em 1953 e conta a história do bombeiro Guy Montag que, em uma versão distópica do nosso futuro, tem como função primordial a destruição de livros impressos com um lança chamas. Muito já foi dito sobre a obra - bem como sobre o filme de Truffaut de 1966 - e o significado simbólico da queima de livros e sua relação com o saber. Porém, um dos temas mais relevantes e atuais da obra de Bradbury está na relação que Mildred, esposa de Montag, tem com sua “Família”.
O autor dá uma boa descrição da relação que Mildred tinha com esta Família: na sua sala, com muito custo, três “telas” foram instaladas, uma em cada parede. Mildred, que na sua primeira aparição tenta cometer suicídio através do consumo de tranquilizantes, pede para que Montag complete sua sala e compre a quarta “tela”. Mildred insiste: por dois mil dólares, sua sala já não seria mais um ambiente apenas dividido pelo casal, mas frequentando por todo o tipo de pessoa inteligente, interessante e exótica.
Mildred passa alí seu tempo. Incapaz de se mostrar de alguma maneira “inteligente, interessante e exótica” no seu cotidiano, Mildred apela para sua Família, que está sempre presente, logo ali, num apertar de botões. Mildred alí faz amizades, abre confidências. É nesse ambiente que Mildred aprende, cria conceitos, estabelece relações, faz comparações. Numa existência anulada pela pouca vivência e pelo parco acesso a informação relevante, Mildred reifica sua Família.
Mais de 50 anos depois, a “Família” virtual é uma realidade hiperdimensionada pela internet. Bradbury anteviu nossa dependência de relações inexistentes, nosso esforço pra o reconhecimento de um público cada vez mais avesso a crítica e cada vez mais próximo da mediocridade. Viu a decadência das relações humanas no que se refere ao diálogo franco e ao conhecimento. Em um mundo sem livros, as sub-sub-celebridades adquirem status de experts, de peritos, de especialistas. Na cadeia alimentar desta “nova era”, nosso limite entre o risível, o absurdo, o inédito, e o que realmente tem valor, acabam por se desfazer: sem parâmetros, aquele que detém mídia faz notícia, cria verdade.
Mildred é expectadora da vida. Via o mundo por uma tela. Criou relações afetivas com seres imaginários, que só existem nesse espaço que permite a constante reinvenção do “eu”, entidade esta que sempre rejeitamos.
Num mundo de telespectadores, temos a impressão que a interatividade é o controle.
Bradbury anteviu o Orkut, o Twitter, o Facebook; percebeu que o fulcro das relações humanas não transcende, em sua amplitude, o mero efêmero; espiou para dentro de nossa alma, de nossa vontade, de nossa (talvez?) natureza e encontrou o vazio.

Abaixo, trailler da versão de Françoise Truffaut de Fahrenheit 451

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