2/04/2010

Flores de Velório


Ele despertou e sentiu o cheiro de pão fresco. Pão de verdade, não essas merdas que vendem no supermercado. Só podia ser caseiro. De súbito, imaginou: pão, café, manteiga. Seu cérebro seria banhado de alto a baixo por uma corrente de endorfina. Leve e delicada. Sentiu o prazer do pão quente, da manteiga derretida, do café forte. Do doce-amargo. Um quase-sonho. Que sonho? - pensou ele, enquanto levantava a cabeça em baixo do chuveiro e deixava a agua fria lhe molhar o rosto. Não se recordou. Também não importava. Ia sair de casa em jejum. Não havia tempo. Estava atrasado.
Pela janela viu o topo da montanha. Viu o céu que começava no horizonte em tons de amarelo-laranja, e que se perdia em um firmamento tão negro quanto seu cabelo. As nuvens cercavam o cume. Vai chover amanhã, mas isso não me importa - disse em voz alta para si mesmo.
Já era tarde. Não sabia a hora. Seria segunda? Ou terça? Não fazia diferença. O compromisso era inadiável. Precisava se lembrar de tudo. Fazia anotações mentais enquanto se barbeava. O sangue fez um pequeno traço na pia. O paletó preto, a camisa branca. A gravata preta. O sapato. Tinha que passar na floricultura da rua de trás. Mas antes, sentou à mesa. Pegou do caderno velho uma folha amarelada. Um lápis preto. Escreveu quatro linhas com traço firme. Colocou no bolso da calça, dobrando cuidadosamente a folha três vezes.
Flores. Eram flores de velório. Azuis, amarelas. As pétalas eram pequenas. O chão estava forrado de um colorido triste. Pediu um pequeno arranjo. A garota da floricultura foi atenciosa. Lhe sorriu quando lhe fez o pedido. Tocou sua mão quando ele lhe deu o dinheiro. Sorriu novamente e lhe deu boa noite. Mas ela sabia. Lógico que sabia.
Um táxi. Precisava de um táxi. Passaram um, dois, três. Nada. O quarto faz a gentileza de parar. O motorista tinha um bigode horrível. Marcas de cigarro e café. Cemitério central, por favor - disse ele, num tom seco. Um aceno de cabeça. Não se falaram mais durante todo o trajeto. O rádio estava desligado.
De pé, diante do pórtico, teve certeza. Seria ali. Esgueirou-se pelo portão e caminhou pelos corredores acinzentados. O mármore refletia a luz da lua que já estava alto no céu. Viu anjos. Viu cruzes. Cercado de gente morta, caminhava sem rumo pelo passeio de pedra. Ao longe viu o menino desenhando com esmero a estátua branca. O menino não o viu, e a cova estava aberta. Com cuidado, agachou-se e entrou naquele buraco úmido. Deitou-se. Cruzou ao mãos em cima do peito, não sem antes tomar um gole do frasco que guardava no bolso.
O sino deu dez badaladas. Ali perto, repousou as flores e o bilhete.

Clique: Thiago Zati

4 comentários:

  1. quando toca os sinos é a hora de ir embora...

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  2. De certa forma, enxerguei Beleza Americana de uma forma diferente depois desse texto.

    abraço
    @bigblackbastard

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  3. Um dos teus textos mais legais! Você conseguiu deixar teu texto tão crível, que é possível sentir o cheiro do café fresco, o frescor do banho - que tudo cura rsrs- o badalar do sino. Não sei se te parabenizo ou se te dou um soco, ele conseguiu me deixar triste.

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