2/20/2010

O ano do Tigre no Brasil pós Carnaval

O céu é de noite, mas o relógio aponta um dia que perde tempo no horário de verão. Ele saiu da cama cedo. Olhos colando em remela. Tomou banho, café e saiu. Tudo em menos de 30 minutos. Não é o trabalhador exemplar, apenas se adaptou ao ritmo da distância. No ponto outros olhos limpos da remela e sonados sem poder esconder, aguardam o mesmo ônibus. Gente simples como ele. Mesmo de banho tomado sente o calor. Pensa rapidamente “O inferno realmente é aqui”. Seu ônibus chega.

No trajeto (em pé entre outros) pensa no transporte coletivo, enquanto um filete de suor escorre por suas costas. A cidade monstro se expande exponencialmente engolindo municípios, triturando a natureza que lhe resta, mastigando pessoas. O transporte acaba sendo um moedor de carne. Aperto. Calor. Truculência. Os ônibus do bairro foram trocados, são agora enormes, robustos, e ainda mais apertados. O terminal também espelha essa contradição, parece uma rodoviária de alguma cidade do interior e não comporta os ônibus e pessoas que ali circulam. Muito gasto para pouco. Ele passa em frente a estação de metrô. Num mundo ideal ele subiria naquelas plataformas e sairia no trabalho, mas o metrô privilegia outras regiões. É de se estranhar que esta linha tenha ido na contramão do padrão de construção estatal. Sair da periferia visando o centro. Morre logo depois do rio, sem chegar a lugar algum. No plano atual, os bairros ricos e centrais tem seu acesso garantido, no plano que assenta os trilhos do centro para a periferia.

No empurra-empurra da plataforma, segue uma fila descomunal até um ônibus biarticulado. O sol sai enfurecido do horizonte. A temperatura parece ficar sólida e tátil, tremulando a frente dos olhos. As costas doem. Ele equilibra um livro numa das mãos enquanto se apóia nos balaústres. Pessoas passam sem pedir licença, ninguém esboça emoção, que não seja raiva e irritação. Ele não consegue se concentrar, as mulheres a sua frente cacarejam sobre o reality show da noite passada. Discordam da eliminação dos candidatos. Ele força a concentração no livro, o texto parece ir apagando diante dos olhos, nada fica retido na memória. De uma sinapse fugidia vem uma frase de Confúcio engavetada na memória “As naturezas dos homens são parecidas; são os seus hábitos que os afastam uns dos outros”. Ao fim dessa lembrança alguém liga música no celular. Ele se pergunta, por que celulares tem de ter caixa de som, se vem com fone de ouvido. Ou por que os celulares têm de tocar música se sua função é de comunicação. Nota os “fiscais” de corredor. Nada de usar rádio e prancheta. A função é empurrar a massa humana dentro dos trituradores de carne. A culpa é do passageiro. Que não reclama do alto valor da passagem, que não é educado, que não dá espaço aos outros montes de carne, empacando o trajeto, atrasando a viagem.

De frente ao prédio do trabalho, pronto a começar a outra batalha do dia, ele pensa no fim do carnaval. As cinzas das fantasias queimadas parecem estar flutuando sobre todos na rua. O dia corre como tem de ser. As costas doem, o suor secou. Os ponteiros da tarde são mais lentos que o da manhã. Passa o cartão de ponto. Ganha a rua. O céu está negro, como em todos os 40 dias ininterruptos que chovem durante a tarde. Sente-se aprisionado numa gaiola onírica, onde todo o dia é exatamente o mesmo. Ele ri ao lembrar de uma frase de carnavalesco: “O povo gosta de luxo; quem gosta de miséria é intelectual.” A chuva pesada da estação cai, nisso uma hora a mais no trajeto é acrescida. Em Hong Kong o cheiro de pólvora do ano que começa, já deve ter sido tragada em meio a poluição. A cidade de cimento afunda em meio a chuva. Ninguém reclama do preço da passagem. Ninguém se importa com seus tornozelos inchados.

Um comentário:

  1. Estou para comentar esse post faz tempo. Hoje pela manhã lembrei dele e vim aqui deixar os meus pêsames a todos aqueles que são obrigados a encarar essa máquina de moer gente que é o transporte público nas grandes cidades brasileiras. Chegou o ponto que eu não acho mais viável defender apenas a melhoria do nefasto busão, mas, em adição, acho que a gente deve caminhar no sentido contrário, isto é, na contramão da necessidade do transporte. Numa cidade do tamanho de São Paulo, com diversas cidades dentro de uma só, é impraticável que as pessoas tenham que se locomover diariamente de seus bairros até o centro. Mesmo que o transporte melhore - e isto é urgente -, temos que, cada vez mais, cobrar por planejamentos físico-territorias que levem os serviços públicos e os empregos para as periferias. Eu sonho com o dia em que os viadutos serão transformados em jardins suspensos. hehe

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