3/01/2010

Linha Onze: um texto sobre um coração partido

O trem ia chegar à plataforma. Eu sabia porque ouvi o silvo distante das rodas de metal cortando os trilhos soltando aquele cheiro do aço quente. A plataforma estava cheia de gente comum, de rosto cansado, que só quer chegar em casa e ver um pouco de TV antes de dormir e recomeçar tudo outra vez. Mas naquela noite quente, meu universo estava contido a poucos metros de mim, em apenas duas pessoas, poucas palavras e alguns gestos.
Eu não conhecia aqueles dois, não sabiam quem eram, seus nomes, o que faziam pra viver, o que gostavam de comer. Ela estava em um profundo e resignado silêncio, com os braços cruzados e o cabelo com uma franja que lhe caia no rosto. Ele falava alto, mexia as mãos, o rosto distorcido, os olhos vermelhos. Eu sabia de tudo; do fim, pelo começo. Ele se vira rápido e começa uma frase. Mas só diz as primeiras letras. Algumas silabas desconexas. Nada. Ela continua ali, olhando para o chão, como se alguém estivesse sendo enterrado bem ali, na plataforma coberta de borracha preta.
O trem chega devagar. O rugido seco do freio é tão alto que me faz levar a mão ao ouvido. Nunca me acostumo. É sempre como a primeira vez. Vejo o rapaz olhando para o nada. Sei o que sente. Sei daquele vazio, daquele buraco que lhe abriram no peito, quase que a pé de cabra. Agora sim ele chora. Ele sabe, assim como eu: nada mais vai ser dito.
O trem para e automaticamente as portas se abrem. Ele ensaia um movimento. Vacila. De novo. Ela arruma a bolsa no ombro, passa a mão no cabelo e levanta a cabeça: isso me deixa ver todo o seu rosto. Ela dá um passo. Só um. Seus braços laçam as costas do rapaz. Ela coloca a cabeça no seu peito e fecha, por um momento, os olhos. Um instante mágico e infinito, que ele não vê - mas que eu vejo. Ele acaricia o cabelo dela uma última vez. Um beijo com carinho e saudade.
O desenlace. Ela se vira. Um, dois, três passos. Ela entra no trem. Não se vira. Não dá adeus. A porta fecha. O trem parte, devagar, seguindo seu caminho pelo trilho ocre. Ele acompanha o trajeto com a cabeça e se vira. Agora eu vejo o rosto dele. Ali não existe ninguém. Naquele momento, seu corpo é uma casca. Seu coração, nada mais que um pedaço de carne do tamanho de uma mão fechada. Ele respira fundo e enxuga os olhos com a manga da camisa xadrez. Toma coragem. Passa por mim como uma flecha, duro como pedra.
Sei o que ele sabe. Sinto o que ele sente. Afinal, tudo isso é apenas um sonho ou uma lembrança distante. Não sei. Mas o alarme toca todo dia de manhã, na mesma hora.

Clique despretensioso: Thiago Zati

2 comentários:

  1. Meu professor de Construção de Narrativas disse, em uma de suas aulas, que não há ninguém que crie personagens melhor do que o Borges e que se algum dia nossos textos lembrasse os dele, ainda que de longe, ele já ficaria feliz.
    Sinceramente ainda nem comecei a criar minha súmula, nem posso dizer se tua escrita é semelhante a de Borges, mas uma coisa em comum vocês tem, e sabia que era exatamente isso que eu gostava em seus textos: você transforma as palavras em cenas. Aula passada descobri que isto tem um nome, e aliás é uma regrinha básica pra boa escrita: sair do conceitual e ir pro imagético. Eu te falei semana passada, odeio ler seus textos, pois morro de inveja. Hahahahaha....

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  2. Seus textos são sempre bons! Triste, me deu uma berto no coração porque me fez ver a cena e me sentir nela(meio o que a pessoa de cima disse), mesmo, mas ótimo!

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