4/17/2010

Chuva na cidade


Um trovão barulhento grunhiu no horizonte. Ele cobriu os ouvidos quando o relâmpago correu dando o aviso. A chuva o encharcava, os ventos eram como espíritos que não pedem licença e empurram corpos que não lhe apetecem possuir. Ele via o céu negro e pesado, com cores em tons chumbo. A calçada era sua e da água que lhe invadia os sapatos.
Um roedor morto servia de dique numa sargeta, empurrava o fluxo da água para o asfalto. Estava com a barriga inchada, cheio de vermes que pululavam em vida, comendo sua morte. Ele sentiu-se um pouco assim, como que inchado por dentro, deduzindo que tinha os intestinos cheios de rancores. Suas pernas doíam, a cabeça rodava, vendo as feições secas, os espíritos ralos que se escondem nas carcaças dos homens e em seus guarda chuvas que passam.
Sentou-se numa praça. Olhou um enorme monumento em bronze ser consumido do alto de seu olhar pedante e imutável, por resíduos de poluição que escorriam também para dentro dos pulmões Dele. Cansado. Encharcado. Corpo trêmulo de baixa temperatura. O mundo se comprimia em uma percepção reduzida a sua volta. Ele era uma bolha minúscula na praça, um cenário ordinário. Esticou as pernas, jogou a cabeça para trás, sentiu filetes líquidos entrando pelo nariz, pelos ouvidos, encharcando a barba. Uma de suas mãos segurava um papel e uma foto dentro do bolso. Seus dentes rangiam de frio, e de lembranças.
Uma viatura passa aos berros. É seguida por uma ambulância que quer superar o alarido e a velocidade. As sirenes são o cutucão que acordaria o bêbado que dorme no lugar indevido. Ele abre os olhos, se põe a andar. Na outra ponta da praça, uma Igreja Batista segue com seus cantos, um coral que inveja os anjos acima das nuvens, se lamuria lindamente em ladainhas de mil anos. Ele se coloca de frente para a porta. Um jovem negro, de camisa e gravata o convida para entrar. Ele balança a cabeça e sem expressar uma palavra, diz com os olhos que estava bem ali. Os hinários tem capas de letras douradas, e as vozes exprimem doçura, até neste que não vê Deus em criação alguma.
Antes que o pastor traga o sermão ele já está distante duas quadras. Os olhos ardem, em lágrimas, e na água suja do céu. Ele se depara com uma vitrine. Vê a si próprio no reflexo da vitrine. Pergunta a si mesmo. Inquire o reflexo que só faz repetir. Insatisfeito abre a mão espalmada e toca seu outro igual de vidro. A foto e o pedaço de papel viraram uma papa disforme. Ajoelha-se chora e a chuva começa afinar. Quando a respiração e o espírito se acalmam ergue-se. Anda, como se o tempo tivesse peso. Arrasta-se. Em frente ao prédio de apartamentos que ocupa, olha sua janela. Tira a gosma que foi papel e foto e são uma única massa agora. Joga num bueiro. Tira a chave do outro bolso, entra no prédio, sobe as escadas. Correspondências lhe aguardam amontoadas na porta, ele as empurra para dentro tão logo gira a chave. Ao entrar, o aconchego de seu mundo não nega o acolhimento. Fica nu na sala, para afundar logo depois na banheira quente no banho. O corpo relaxa. Depois com lamina e espuma permite a si mesmo aparecer, faz seu rosto a tempos escondido na barba vir ao mundo, mostrar quem é sem a mascara que carregou por tempo.
Do fundo do guarda roupa tira uma caixa. Desce as escadas. Numa pilha de lixo próxima de onde jogou a gosma de seu passado, abandona a caixa como que para alguém se afeiçoar e levar suas lembranças consigo. O céu esta limpo pois a chuva parou. Uma brisa leve o saúda. Amanhã é segunda e tudo começará de novo.

Nenhum comentário:

Postar um comentário