9/16/2009

Nosso Sonho, por ABC



Acabei, finalmente. Cheguei a página 226 de O Sonho dos Heróis de Adolfo Bioy Casares, escritor argentino e contemporâneo, um dos grandes do nosso tempo.

Fui ler o Bioy - não escondo - por influência de Borges. Borges é argentino como Bioy, e os dois dividiram um pouco mais que amizade nos anos que passaram juntos. Dividiram a intimidade carnal de algumas páginas escritas, o que representa um nível de intimidade visceral entre ambos.

Bioy, assim como Borges, se aproximou do fantástico, mas diferente deste, Bioy torna seu fantástico factivél, quase “realista”. Diferente do inescapável escafandro de Borges e seu multifacetado pluriverso, Bioy é econômico, tornando sua visão onírica de um mundo em permanente desconstrução uma paisagem idilica. Se Borges é violência, Bioy é uma serene contemplação. Mas, apesar da amizade, Borges aprontou com o amigo Bioy: morreu antes, em 1986, criando uma sombra inescapável sobre Bioy, que morreu em 1999.

Borges disse sobre O Sonho dos Heróis: “nós, os argentinos, só conseguimos conceber uma única história, a amarga e lúcida versão que Adolfo Bioy Casares idealizou corresponde com a trágica plenitude a estes anos que correm”. Borges nacionalizou Bioy e seu sonho: o valor do livro residiria no seu contexto e em seu papel como símbolo: e estes, com alta significância para a Argentina e para sua história durante o século XX.

Mas, Bioy trancendeu a Argentina, e para isso, bastou colocar seu pequeno romance em catarse.

Em O Sonho dos Heróis acompanhamos alguns poucos anos de Emilio Gauna: jovem trabalhador de uma oficina que ganha uma pequena bolada apostando em cavalos, isso em pleno carnaval de 1927. Com esta grana, resolve se divertir com os amigos. Mas esta noite se perde nas memórias do protagonista em meio aos excessos e aos devaneios. Gauna assim passa todo o livro, buscando recuperar as memórias dessa noite. Gauna se casa, larga os amigos de farra, os reencontra, conhece pessoas. Mas a noite de 27 é inescapável. Ela é perene. Ele é intermitente.


E aqui é que forma e conteúdo se fundem. O que é este sonho? Simbolicamente, qual seu papel? O livro funciona como um devaneio. Os capítulos se iniciam vigorosos, detalhados, firmes; mas logo descabam para a incerteza para tornar-se apenas lampejos de uma narrativa. E aqui a metafora da forma aponta o significado do texto, onde esta busca implacável de uma noite esquecída é também nossa busca inexplicável por uma felicidade perdida. Nosso ideal, que fora potencialmente vivido em algum momento, mas que não resiste ao teste da verdade. Ou ainda, da razão.

Assim como qualquer pessoa, o narrador não pode trabalhar com detalhes e com o ordenamento. Num sonho, como num pileque.

Ao mergulhar profundo nas entranhas da cidade em busca de sí mesmo, Gauna se defronta com a terrível Buenos Aires, que é tão terrível como qualquer cidade grande, com seus personagens, personalidades e seus sons.

Bioy nos dá uma aula sobre a natureza humana e sobre nossa incessante busca pelo prazer e pelo deleite. Ao mesmo tempo, nos dá uma aula sobre a escrita em seu aspecto formal - lições que nossos pretensos escritores dos botequins augustianos deveriam aprender, ao invés de copiarem descaradamente o genial Bukowski.

Mas é sempre isso. Busca. E sonho. E no fim, nossa inerente tragédia.

Nenhum comentário:

Postar um comentário