6/20/2013

E agora Esquerda?




Nas últimas semanas uma série de manifestações tomaram as cidades do país, reivindicando a diminuição das passagens de trem, ônibus e metrô, impulsionadas pelo MPL (Movimento Passe Livre), um coletivo autônomo e apartidário que a quase 10 anos luta pelas questões relacionados ao transporte público coletivo e tem como foco de reivindicação o passe livre, ou seja, a gratuidade no uso destes meios de transporte para todos.

Muitos setores da esquerda aderiram a luta do MPL e foram as ruas protestar e posicionar contra o aumento das passagens em várias cidades do país, protestos estes marcados pela ação direta e desobediência civil, que a mídia tradiconal convenientemente chamou de baderna e vandalismo, com a clara intenção de desmobilizar e desmoralizar o movimento, fazendo com que o cidadão médio se indignasse contra as manifestações.

Mas o tiro saiu pela culatra quando o Governador do Estado de São Paulo equivocadamente ordenou ao aparelho de repressão do Estado, a Polícia Militar, que endurecesse contra os manifestantes no ato da quinta-feira dia 13 de junho. A violência da ação policial contra a classe média que estava nas ruas gerou um clima de indignação na população e fez com que ao invés do movimento diminuir, ele aumentasse espantosamente e na segunda-feira dia 16 de junho cerca de 100 mil pessoas saíram as ruas não motivadas pela pauta em questão, mas sim indignadas por causa da ação da PM, e a partir daí introduzindo outras pautas que não faziam parte do movimento.

Ao ver toda aquela gente na rua, obviamente que todos aqueles envolvidos nas manifestações desde o começo, se empolgaram, vendo a oportunidade de uma adesão real as pautas políticas propostas pela esquerda que havia articulado tudo aquilo, esquerda esta que inclui MOVIMENTOS SOCIAIS, PARTIDOS POLÍTICOS, COLETIVOS, PESSOAS AUTÔNOMAS e claro, o próprio MPL que era o disparador e articulador de tudo.

Mas a empolgação logo se transformou em frustração, quando ao invés de termos pessoas engajadas na pauta em questão, o transporte público, o slogan: “Não é só pelos 20 centavos, é por direitos” e a ação policial da última semana, fez com que pessoas dos mais variados tipos, orientação e desorientação política se juntassem a manifestação querendo ser ouvidas, mas agindo de forma contraria ao que estava acontecendo no movimento desde o começo. Estes novos “manifestantes” protestavam criminalizando a ação dos assim chamados vândalos, mostrando que o discurso midiático havia funcionado, posando em fotos ao lado da PM, dizendo que a luta era de todos, conclamando a não violência e a paz nas ruas. Vestindo branco ou enrolados na bandeira do Brasil, os novos caras pintadas entoavam o hino nacional e canções que somente torcedores da seleção brasileira cantariam (quem gosta de futebol de verdade sabe do que eu estou falando).

A princípio isto causou náusea naqueles que estavam construindo o movimento desde as primeiras semanas e esta náusea criou uma avaliação equivocada e um discurso anti-coxinha nas manifestações, juntamente com um sentimento de que “os verdadeiros” estavam perdendo espaço para aquilo que eles sempre lutaram contra, dentro do movimento que eles mesmo criaram. Várias mensagens foram postadas nas redes sociais, radicalizando contra os coxinhas e a chamada “direita” que estava dominando as manifestações, tentando fazer com que eles se adequassem ao modelo e pauta proposta, ao invés de desvirtuar o movimento com um ufanismo nacionalista e um discurso político moralista.

O erro ao meu ver foram dois, e admito ter caído neste erro analítico também.
O primeiro foi esquecer que o cidadão médio, aquele que não é envolvido com política, não tem cultura política e só se preocupa com o tema em época de eleição, tende sempre para as ideias mais a DIREITA, justamente por estas apresentarem soluções mais imediatas e fáceis, carregadas de uma carga moral, que não questiona em nenhum momento o establishment, ou seja, não tira a ordem burguesa da sua ordem. Não questiona o Estado por ser Estado, mas sim os políticos enquanto indivíduos, e não coloca em cheque o modelo democrático vigente, mesmo não se sentindo representado dentro dele. Os professores de história podem afirma isto melhor do que eu, quando pensamos na instauração das ditaduras no século passado, dos Fascismos, Nazismo, Comunismo Soviético até chegarmos as ditaduras capitalistas na América Latina, em todos os casos o povo as legitimou em um primeiro momento. Desde então, uma sucessão de manifestações ocorreu e cada vez mais os grupos se polarizaram neste sentido, a medida em que as pessoas aderiam mais, a mídia começou a apoiar os atos (mas sem vandalismo), e a polarização entre um lado radical de esquerda e a turma da micareta foi ficando mais evidente.

O segundo erro foi realmente achar que aquelas pessoas em clima de “O gigante acordou” eram realmente de direita quando na maioria dos casos, eles nem sabiam exatamente o que estavam fazendo, era só mais uma comemoração da Copa envolvida em um discurso pseudo-político de quem nunca fez política na vida. Eram pessoas normais que nem sabem a diferença entre direita e esquerda, entre democracia e totalitarismo ou qualquer coisa do tipo. Eram pessoas que precisam ser educadas e não rechaçadas! Mas não entendemos desta forma e acirramos o discurso contra eles, os coxinhas de direita.

Isto deu margem para que a direita real, organizada e muito, mas muito bem disfarçada se infiltrasse no movimento, capturando-o ideologicamente e sutilmente colocando suas pautas que aparentemente são democráticas, mas cujos efeitos são imprevisíveis. #ForaDilma #Contraacorrupção #Sempartido e por aí vai. O cidadão médio não se pergunta: “E depois?” Mas nós devemos nos perguntar e ajudá-los a entender.

Fora Dilma! Mas quem colocaremos no lugar em uma democracia, já que não vamos derrubar o Estado? Legalmente assume o Michel Temer, o que vocês acham? A direita organizada já começa a falar de junta militar...medo!

Contra a corrupção! Muito bem, que tipo de pauta política é essa? Em sã consciência quem é a favor da corrupção? E o efeito disso é: como acabar com a corrupção? A direita organizada já começa a falar em junta militar no governo para higienizar a política....medo!

Perseguição aos partidos políticos e movimentos sociais engajados na luta. Pois é, confundiram apartidarismo com repulsa aos partidos, mas para o bem e para o mal vivemos em uma democracia e democracia precisa de partidos políticos. E tanto os partidos, quanto os movimentos sociais, estão nesta luta desde o começo e por mais que eu discorde ideologicamente de muitos deles, dentro de uma democracia, a existência deles é fundamental. Unipartidarismo é ditadura, ou seja, mais uma vez a semente do pensamento de direita é plantada sem que percebamos.

Hoje, dia 20 de junho de 2013, li relatos na Internet de que haviam até neonazistas na avenida paulista incitando o povo contra anarquistas, partidos e movimentos de esquerda que lá estavam, e a massa com o seu comportamento de massa, obviamente aderindo à ideia de que os partidos são o verdadeiro câncer social que devemos eliminar.

E como a esquerda está agindo neste contexto?

A esquerda, seja ela partidária ou apartidária me parece perdida frente ao desafio de atuar ao lado das pessoas comuns que são facilmente influenciadas dada a falta de criticidade e de apuro político. Eu mesmo tive que conter alguns garotos anarquistas na avenida paulista que estavam tentando queimar a bandeira do Brasil de um casal que passeava tomando cerveja e explicar para estes garotos que o momento agora, me parece muito mais pedagógico do que bélico. Não devemos tentar lutar contra as pessoas, pois elas realmente não sabem do perigo que correm sendo manipuladas pos conservadores, nazistas e fascistas, devemos chamá-las para conversa e explicar os nossos pontos, objetivos e luta. Não devemos entender a bandeira do Brasil como um símbolo do nacionalismo ufanista, mas sim tentar explicar que neste momento precisamos abaixar as bandeiras nacionais, pois estas manifestações nada tem a ver com o “orgulho de ser brasileiro”, é sim uma crítica a forma como todos nós somos tratados neste país.
A esquerda precisa se organizar e se unir, ao invés de se separar por motivos ideológicos. Criar uma estratégia pedagógica para não deixar a direita dominar as manifestações e desviar as pautas de reivindicação. É um momento decisivo, antes deste movimento se esvair e todo o pensamento de direita que pouco a pouco vem crescendo sem que as pessoas percebam, acabe se tornado hegemônico e realmente perigoso para o país. É hora de estar lá, não de abandonar o barco e deixá-lo naufragar com um grito de ANAUÊ!


12/20/2010

Dilated Peoples no Brasil? Não...Rincon Sapiência e seu "disparate".


Fiquei dois dias pensando em escrever alguma coisa sobre o fabuloso show do Dilated Peoples que eu presenciei na última sexta-feira, na quadra da escola de samba Tom Maior. Não sabia ao certo sobre o que escrever, e não queria cair no senso comum, enchendo o evento de elogios, que seriam até merecidos, já que a organização foi realmente muito boa. Não queria também falar da performance dos Mc's de Los Angeles no palco, e do show a parte que é o DJ Babu, pois isso, seria chover no molhado. Então decidi escrever um texto curto, sobre um evento que ocorreu no show e que me supreendeu muito, a performance de Rincon Sapiência.

Muito vão se perguntar, "Mas por que escrever sobre um artista que nem era o mais importante da noite, e que cantou apenas uma música no evento?"
A resposta é simples, porque na maioria das vezes podemos ter uma percepção mais apurada de uma ação social, quando analisamos a história menor, ou seja, aquela que aos olhos do grande público é a menos importante.

Durante as apresentações iniciais que antecederam a grande atração da noite, alguns Mc's subiram ao palco e mostraram tudo aquilo que o público queria ver, Rap de verdade, com mais ou menos swing, mas ainda assim Rap. Tudo era extremamente Rap, as roupas, as rimas, as posturas no palco, eram todos se apresentando dentro de uma mesma linguagem, fazendo aquilo que o público presente aguardava, como um aperitivo para o prato principal. Eis que um sujeito vestindo calça skinny amarela e camisa cor de laranja, surge no palco ao som de um batidão, ao melhor estilo funk carioca. Estéticamente, poderíamos descrever como uma mistura de Mr. Catra com a banda Restart, muito diferente de tudo aquilo que estava acontecendo naquele local. E assim prosseguiu a apresentação de mais ou menos 4 minutos, Rincon Sapiência cantou funk carioca, usou batida inspirada no miami bass, mas com letras que fugiam totalmente da temática funk carioca que estamos acostumados, nada de popozuda, tchutchuca, ou coisas do tipo, era a mensagem e as idéias típicas do Hip Hop, inseridas numa outra linguagem periférica, o funk, e se apropriando de um visual extremamente pop. Uma loucura!


É óbvio que uma exposição dessas não deixaria seu autor impune. Mesmo que aparentemente a grande maioria das pessoas no evento, pareceram não se importar muito com o que acontecia, uma minoria significativa, se manifestou em relação ao fato, através de vaias e gritos hostis contra Rincon. Alguns diziam: "Que merda é essa?", "Canta Rap nessa porra filho da puta!", "Tá pensando que tá no Rio!", entre outras coisas. A pergunta que me veio à cabeça na hora foi, como um movimento que propõe uma revolução ou reforma social e pessoal, que se autoproclama a voz dos injustiçados, pode ter uma postura tão agressiva em relação aos seus pares e pior do que isso, tão conservadora? Não que eu ache que um movimento descentralizado como o Hip Hop, seja composto de forma homogênea, não é isso. Mas eu queria acreditar que com 30 anos de história, e de produções artísticas em diversos campos da cultura, algumas pessoas envolvidas com o Hip Hop já tinham aprendido que as coisas só mudam, evoluem e se transformam, se pudermos experimentar dentro do nosso campo de ação. Imaginem se Caetano Veloso e os tropicalistas não tivessem experimentado intencionalmente a guitarra elétrica no fim dos anos 60 para revolucionar a MPB. Ou se Ornette Coleman, John Coltrane, Sun Ra entre outros, não tivessem experimentado a liberdade musical e a improvisação dentro do Jazz. E se o Kraftwerk não tivesse experimentado fazer música só com sintetizadores e dispositivos eletrônicos, o que aconteceria?

As manifestações culturais precisam de experimentação, precisam de gente que enfrente alguns tabús e idéias já consolidadas, para que elas possam ter algum significado real, para que elas possam realmente ter algo de interessante e provocador, para nos fazer pensar um pouco. O artista Rincon Sapiência, não fez nada além de incorporar outros elementos já conhecidos, e até mesmo próximos ao Hip Hop, não foi nada demais, mas já foi o suficiente para acender a chama conservadora dos ditos "reais" do movimento. Cultura sem troca de informações, influências e misturas, é cultura morta, não serve para nada, e fica restrita ao gueto ideológico. Espero que daqui para frente, mais artistas de Rap sintam-se livres para experimentar outras concepções estéticas, misturar, e virar tudo de ponta cabeça, para que o Rap seja realmente o que ele sempre prometeu ser, uma ameaça para o status quo.

7/21/2010

Documento


Naquela manhã de domingo, ele sabia. Era o fim. Isabela veio buscar a penteadeira branca, feita a mão pelo bisavô e que foi dada de presente para a esposa. Era a pedra sobre o caixão. Ele gostava da mesa. Sentava ali para ouvir discos, escrever bobagens, trabalhar, ver a janela. Caio, o atual namorado, veio junto. Trouxe o carro do pai, maior para poder levar o móvel.
A xícara de café frio estava em cima da mesa.
A interfone tocou, ele apagou o cigarro na pia da cozinha e atendeu. Ouviu passos no corredor então o barulho da campainha.
“Ele não vai conseguir levar a mesa sozinho” - pensou em voz alta, enquanto destrancava e abria a porta.
O beijo no rosto. Os sorrisos. Palavras vagas.
Ela ainda usava o mesmo perfume. Ele achou aquilo estranho: fazia tempo, mas a casa seria sempre um pouco dela. Caio apertou-lhe a mão e disse:
“Me dá uma mão? Ela parece...”
“Pesada”, ele já se adiantou. “Sim, claro”.
Para evitar meia cerimômia, a mesa já estava na sala e não mais no quarto onde ficou por anos. Era pesada, de madeira maciça, toda pintada de branco. Ele largou o óculos na estante cheia de livros e juntou-se a Caio na tarefa hercúlea de descer dois lances de escada. Isabela em silêncio, se precipitou em reabrir a porta recém fechada.
Nos primeiros passos, Caio percebeu que a tarefa seria mais difícil do que prevera.
“A gente não pode tentar... “, Caio lançou a cartada.
“O elevador? Nem pensar. É difícil levar até a cadeira lá de tão pequeno”.
E assim foi feito: cada um segurando em um dos lados da mesa, esgueirando-se pelo corredor escuro em direção à escada em forma de caracol.
Entre um degrau e outro, Caio iniciou tentou, mais uma vez, uma conversa:
“Não nos vemos desde..”
“O jantar na sua casa. Eu lembro que tinha dito a Isabela que tinha gostado de você” na mesma hora, perguntou a si mesmo porque havia dito aquilo.
“Aquele foi um bom dia” disse Caio, tentando arrumar o óculos que lhe escorregava pelo nariz.
Ele levantou a cabeça e parou. Sabia bem o porque desse comentário; naquele dia caio reencontrou Isabela. Não se viam a tempos. Os comentários, as conversas. Aquilo sempre fez sentido. Entre um pensamento e outro, gritou:
“Cuidado, a porta!”
Caio parou. Com cuidado, colocou a mesa no chão. Se virou, abriu a grande porta de vidro, e a escorou com o peso. Passaram por ali com cuidado e seguiram, devagar, em direção ao carro, que estava estacionado quase junto ao portão de ferro cinza.
“Precisa de ajuda?” Ele disse, já quase se virando e pegando um cigarro.
“Não precisa, Isabella me ajuda a colocá-la dentro do carro” disse Caio, sem olhar no rosto dele, enquanto abria a porta do carro.
Eles se deram um aperto um aperto de mão e se olharam fixamente por alguns segundos. Caio então meteu a mão nos bolsos procurando e parecia caçando o celular. Atendeu virou-se e começou a caminhar.
Ele ficou ali por um minuto talvez. Tragou o cigarro. Sentiu o sabor amargo na garganta. Lembrou-se que precisava almoçar. Respirou fundo. De repente lembrou-se:
“A cadeira! Falta a cadeira!”
Correu. Atravessou a porta de vidro e subiu os dois lances de escada como um raio. Chegou. Abriu a porta.
“Isabela?”
Ela já tinha ido. Colocou mais comida e água para o gato. Na estante, ele logo notou: lá estavam os dois livros do Dostoievski. Ela tinha tirado o primeiro volume de O Arquipélago.
E levou a cadeira.

Clique meu, do expurgo.

7/20/2010

Few minutes ago via web


Todo dia é igual. Ao abrir meu Twitter, vejo uma torrente de segredos, confissões e delações na minha time-line. Todos os dias, a cada update.
É estranho: no princípio eu admirei o Twitter como ferramenta. “Seguir” as pessoas e coisas certas mudava a maneira como lidava com a informação. A capacidade de dispersão de produção de conteúdo me pareceu o futuro da comunicação e da promoção de idéias. A busca de informação não era mais realizada por mim, de maneira indireta, filtrando previamente minhas preferências, automaticamente era criado um banco de dados atualizado das coisas que gosto, a todo momento.
Mas isso foi no princípio. Houve uma migração massiva de usuários do orkut para o twitter (o tal do usuário médio) e foi então que minha time-line mudou drasticamente. Cada dia que passava, eu sabia mais dos pequenos segredos e das pequenas perversões daqueles que seguia: brigas com o namorado, confissões de desejos, frustrações amorosas, relações pessoais de trabalho. Tudo. De um momento para o outro, não havia mais segredos.
Sim, minha reação imediata foi não seguir mais as pessoas que “poluíam” meu Twitter. Porém, o que me assustou foi o fato de que este não movimento não era um caso isolado, pelo contrário: é assim que grande parte dos usuários pessoas utilizam a internet e as redes sociais.
Este é um fenômeno social.
As pessoas não conseguem mais pensar, sentir ou ouvir qualquer cosia sem espalhar para os sete ventos o “que está acontecendo agora”. Demissões foram causadas por tuites mal vistos. Namoros terminam devido a exposições não planejadas. Traições são descobertas. Amizades são rompidas.
Não sou um conservador: acredito que dividir gostos, preferências, idéias e sentimentos seja algo de positivo. Uma mágica realizada pela internet e pela conexão entre as pessoas. Porém, me assusta o uso que fazemos da ferramenta, e a maneira como estamos lidando com nossa privacidade.
Cada vez mais, o que é público e o que é privado torna-se indiscernível, e qualquer possibilidade de resguardo de intimidade passa a ser visto como uma falta. É interessante notar o fato de que o brasileiro é o povo com maior adesão às redes sociais. Justo nós, que desde em nossa origem histórico-social, temos um lapso na relação coisa-pública/ coisa privada.
Vejo aqui um pequeno sintoma de nossa sociedade contemporânea. A massa hoje não é mais amorfa: ela possui um avatar, um log-in, uma senha, um twitter, um orkut, um facebook. A identidade está ao alcance de alguns cliques. Porém, esta identidade construída virtualmente, devido a sua fragilidade, deve ser sempre reafirmada, devassada, violentada. Criamos uma identidade inventada, vivemos a auto-afirmação do querer ser. Como pequenos deuses, criamos a nós mesmos, mas de acordo com nossos desejos e intenções, não mais a nossa semelhança. Nós mesmos nos tornamos produto.
No mundo onde a depressão e a solidão são moedas de troca, as redes sociais se tornaram grandes divãs públicos: hoje, todos estamos ao mesmo tempo, deitados falando e ouvindo.
Me pergunto se em nome do ego, não estamos, a cada tuitada, matando nosso super-ego.

5/31/2010

Um detalhe


O quarto era pequeno, mas tinha uma janela grande que dava para a avenida. O tempo era aquele cinza bonito, típico de como fica São Paulo no outono. De pé, encostada no parapeito, Paula olhava o dia de chuva que se desenrolava em câmera lenta. No reflexo da janela, lembrou-se da menina que corria nas ruas do Brás quando criança, lembrou-se da padaria da esquina onde comprava doces. Lembrou-se do sorveteiro. Sentiu o gosto de algodão-doce e o cheiro de cigarros e perfume barato que exalavam da roupa do avô. Viu, naquela imagem de sonho, entrar pela porta um pai que nunca vira antes, carregando uma mala grande e lhe dizendo, aos gritos, que precisvam ir embora. Sentiu a mais que presente ausência da mãe, de quem só sabia o nome. Memórias e lembranças.
Uma lágrima escorreu no seu rosto no rosto. Paula limpou-a com a manga da blusa velha que usava para dormir. Respirou fundo e tomou um gole da xícara de café. Como todas as manhãs. Ainda era bem cedo, e a cidade acordava.
O gaveteiro era branco e cheio de ranhuras. Tinha um pequeno puxador dourado, com detalhes em madeira. Ficava encostado num canto da parede, ao lado da cama de solteiro. Dentro, Paula guardava um pequeno caderno preto. Escrevia o que lhe desse na telha, mas tinha o costume de não ler o que rabiscava ali. Podia chamar aquele caderno de diário, mas na verdade, Paula não dava tanta importância ao que escrevia. Achava cliché ter um diário, achava cliché colocar sues fantasmas no papel. Nunca quis ser escritora, nunca teve pretensões artísticas. Mas escrevia. Naquela dia, pegou o lápis preto e desenhou com letra cursiva as primeiras frases que lhe surgiram na cabeça. Mecanicamente encadeou, como sempre, palavras sem sintaxe. Números e letras. Um pequeno código pessoal aleatório.
Outra xícara de café preto. Seguida de mais uma. Olhou para o relógio. Sete horas.
“Preciso sair, vou me atrasar” - pensou, enquanto se levantava. Colocou o bule no fogão. Lembrou dos livros que precisva pegar: Tolstoi, Dostoievski e Puchkin. “Literatura Russa, sala B, quarto andar”. As chaves. O cotidiano reconhecível e repetitivo.
Trancou a porta e colocou a chave no vazo. Sim, ele iria para lá esta noite. Estariam juntos. Fariam amor. A mente de Paula se projetou doze horas a frente. Celso traria pizza e uma garrafa de vinho. Iriam ver televisão deitados na cama. Sentiriam um o corpo do outro no cobertor quente. Um beijo na testa de boa noite. Paula desceu as escadas e correu pelo corredor. Abriu a porta pesada que dava pra rua e viu o letreiro amarelo do ônibus de linha.
Celso pegou o trem em direção ao centro. Já era tarde, quase noite. Desceu na Estação da Luz e ouviu o sino bater sete vezes. Era só pegar o metro. Paula queria pizza, mas só trazia o vinho. “Vou ter que passar na padaria”, pensou, de pé, apertado entre os passageiros. Lembrou-se, de repente, de como conheceu Paula, naquele café da Pinacoteca. Ela tirava foto das putas que frequentavam o Parque da Luz para um trabalho da faculdade. Celso achou engraçado a cena: menina ruiva e de olhos pretos tentando esconder a câmera entra a bolsa e a blusa. Claro, todas as putas sabiam que estavam sendo fotografadas. Faziam até pose, enquanto Paula buscava o melhor ângulo. Rindo para si mesmo, Celso abordou-a para ajudá-la. Paula agradeceu. Primeiro fez-se de desentendida, depois aceitou o convite para o café. Já se passaram 6 meses.
Celso passou na padaria, comprou pães recheados. Já tinha o vinho, faltavam apenas alguns frios. Pagou a conta, atravessou a rua e abriu a porta. A escada era escura, mas eram só dois lances. Teteou os bolsos.
Merda! As chaves! - disse em voz alta.
Imaginou que tivesse as esquecido. No mesmo instante, lembrou-se: estavam no vazo. Agachou meio sem jeito e encontrou o molho. Lentamente, abriu a porta do apartamento. Nunca soube se comportar numa casa que não fosse a sua. Olhou em volta e sabia: as coisas estavam exatamente como Paula havia deixado pela manhã. A xícara, o bule, a janela.
E o caderno preto.
Paula o havia deixado o caderno em cima da mesa. Esqueceu-se dele ali e durante o dia todo. Em nenhum momento, se lembrou dele. Celso viu a capa de couro e as páginas amareladas. Um lápis marcava a última página escrita. Não se conteve. Fechou a porta, sentou-se na mesa e começou a ler.
Vinte minutos depois, Paula abriu a porta sem cerimonia. Celso olhou-a no olho, com o caderno em uma mão, disse:
- “O que é isso?”
- “É um caderno. Porque?”
- “Por nada, por que nunca...” - ele disse, sem muita certeza.
- “Porque é meu. E não achei que lhe fosse interessar”. Paula colocou a bolsa sobre a mesa.
Celso abaixou a cabeça e começou a chorar.
-”Celso?!” - Paula disse num misto de indignação e ternura.
-“Mas por quê? Por quê, Paula!?”
-“Porque o quê?” disse Paula, se aproximando de Celso, olhando-o nos olhos e colocando uma mão no seu rosto.
Celso ficou em silêncio. Longos 15 segundos se passaram. Levantou a cabeça e com voz embargada, disse:
-”Quando vi esse caderno em cima de mesa, vim devassar sua vida: procurar algo que não sabia o que era. Queria um segredo. Depois de correr os olhos por todas estas páginas, chorei não pelo que encontrei, mas sim pelo que não achei. E isso me doeu mais que tudo”.
Paula o olhou nos olhos, e nada mais precisva ser dito: de todas as palavras que ali encadeou, nunca havia escrito nem o seu nome, nem o de Celso.

Clique sem juízo: Thiago Zati

5/03/2010

Triste Nota

Nunca postei aqui...mas isto se faz necessário neste momento...

Deixo um abraço à minha família em memória de Lin Mesquita, meu primo que se foi no início deste dia.
Esteja onde estiver...sua vida se faz presente em nossa memória.
Um forte abraço primo...

Alessandro França Soares

4/29/2010

A politicagem no Twitter: aparência ou transparência?


Já não é mais novidade para ninguém a importância da internet como ferramenta de articulação política. Dos blogs ao Twitter, de jornalistas à políticos, todos estão de alguma forma ligados na internet e suas redes sociais. Em 2007 participei de uma pesquisa em grupo, que tentou mapear e entender o uso das novas tecnologias na ação política e em 2008 fiz uma pesquisa individual para tentar entender se a internet poderia ser uma possibilidade para a revitalização da esfera pública e consequentemente o aumento da participação política (mais detalhes entre em contato comigo). Todas essas pesquisas me levaram a reflexões interessantes sobre o uso da internet, e quando o Twitter me foi apresentado em meados de 2009, a princípio não vi a ferramenta com bons olhos, pois me parecia muito mais uma vitrine para auto-promoção do que uma ferramenta informativa de interação (Como os blogs costumavam ser). Com o passar do tempo, e o uso constante, descobri que o Twitter é tanto uma coisa, quanto outra, pois é uma ferramenta e cada um a usa como quer. Mas o que mais me espantou foi o fato de muitos políticos aderirem a ferramenta, e deste modo, ficarem cara a cara com seus eleitores, o que pode ser muito perigoso para a maioria deles. Sendo as redes sociais ferramentas de interação, estes políticos ficariam expostos a uma enxurrada de perguntas e críticas, e em alguns casos teriam que prestar contas a população. Mas conforme fui analisando a forma como estes políticos usam o Twitter, percebi que havia um problema, o princípio da interação foi deixado de lado e só a auto-promoção era o objetivo.
Quando pensamos em redes sociais a primeira idéia que temos é de proximidade, de achar ou sentir que há uma proximidade entre locutor e interlocutor, isso dá uma certa sensação de segurança e confiabilidade, é o que todo eleitor busca em sua relação com o seu representante. Mas na prática a coisa funciona diferente, pois a confiabilidade que surge através da transparência em relação as idéias, propostas e um possível debate com este político não existe. O que existe é aparência, é a sensação de que isso é possível, quando na realidade não é pois, eles vão contra este princípio básico das redes sociais, que é a interação. Fiz algumas perguntas, questionei algumas coisas, para alguns de nossos representantes e para minha surpresa, nunca obtive resposta. Eles transportam para o Twitter, a velha lógica paternal do "Eu falo e você escuta". Não há diálogo, sendo assim, não há proximidade e nem confiança, o Twitter se transformou em um "santinho" virtual que pode ser atualizado 24 horas por dia.
Faça o teste, entre no site Politweets, que tem uma lista de todos os políticos que estão na rede, siga alguns deles e tente dialogar. Já que eles estão numa rede social, vamos tentar fazer com eles entendam que as regras são claras e que sem interação, a participação deles nestas redes é totalmente dispensável.

Cartoon retirado do blog: http://mesquita.blog.br/

4/26/2010

Macacos, Macacos! Uma nova Apes.


Como tudo precisa ser mudado e reformulado, o blog da Revista Apes apresenta seu novo layout.
Essa mudança é também uma mudança de espírito: acreditamos que temos um bom time, acreditamos que temos o que dizer, e acima de tudo, achamos que podemos produzir um conteúdo mais provocativo, mais ácido e mais interessante do que estamos acostumados (e cansados) de ver por aí.
A revista também mudou. Depois de muitas discussões (e um ou dois dentes quebrados) vamos abrir espaço para ilustradores e artistas gráficos que queiram participar do número um. Queremos que a revista disponível para download tone-se uma referência da arte outsider produzida por estas bandas.
Teremos um tema central, e cada edição privilegiará a criação de um escritor escolhido previamente para a edição.
Lembramos que a iniciativa é totalmente “do-it-yourself”, sem fins lucrativos no sentido de que buscamos divulgar o trabalho daqueles que já estão no rolê ou estão chegando agora. Dito isso, o tema da próxima edição é “Cidade”, buscando refletir sobre a vida na urbe caótica do século XXI. Dúvidas e sugestões pelo email revistaapes@gmail.com ou via nosso twitter @revistaapes.
O programa Andaime, nosso (vulgar e chucro) podcast também passa por algumas mudanças. Teremos especiais eventuais sobre temas fechados, como o especial Japão que entra no ar em breve. Nos novos episódios teremos sempre a participação especial de pessoas que criam e desenvolvem atividades (que nós consideramos) interessantes. Tudo isso intercalado de músicas colhidas do material que nós é enviado, ou “a base de nosso mais-que-conhecido bom gosto pessoal”.
É só por isso que temos polegares opositores.

4/22/2010

"Amigas pero no mucho" ou falando um pouco sobre teatro...



Só para adiantar o expediente, não sou nenhum perito. Já assisti uma meia dúzia de montagens de clássicos com atores anônimos, umas realmente muito boas. Outras que vi, foram com globais, o que confesso foi uma lástima. Pelo exagero da montagem, e pelo "público tv" que vai lá como fã para ver o ídolo e não assistir uma dinâmica diferente de se contar uma história. Mas aí é aquilo né, o povo é educado, os jovens ouvem funk no celular pendurado no pescoço. ..
Teatro é um lance meio louco, entre apreciadores, público e habitués tem uma coisa meio estudante da ECA, meio Artes do Corpo da PUC. Que (SALVO UM DESCOMUNAL PRECONCEITO MEU) todo mundo é mutcho loco, super desinibido, prafrentex, descolado, cool e no fim das contas chato pra caralho. Gente que usa echarpe, sandália, macacão de frentista de posto de gasolina. Recomendo um rolezinho básico pela Roosevelt em noites de apresentação para confirmação.
Além disso, existe o nicho dos "conceituais"....uns filhos bizarros e incestuosos do Zé Celso, uma coisa de ficar rolando no chão, insinuando uma sexualidade exagerada, de sentar no seu colo e oras bolas, interação o caralho, eu pago para assistir, fosse para participar tinha escolhido outra profissão. Ainda que se fale muito de orgia e por mais atrativo que possa parecer, sempre beira a falta de higiene. Nessas me vi numa apresentação baseada num texto de Antonin Artaud...A unica coisa que posso dizer é que foi pura porralouquice. Não que eu seja tremendamente reaça,, beleza, nem toda arte é para se entender. Mas as pessoas confundem retardo mental, texto qualquer nota, interpretação torta, com genialidade que convenhamos é para poucos. Pior que fui verde, não conhecia o homem (o Antonin) depois me foi passado um livro sobre o cidadão, para ver se o macaco aqui conseguia decodificar a mensagem. Lamento. Depois de ler e ver que tem umas ligações com fezes, drogas, hospício, arreguei, prefiro continuar um neanderthal-acadêmico mesmo.
Isso dito, dia desses recebi o convite para assistir "Amigas pero no Mucho" no Teatro do Shopping Frei Caneca. Os convites vieram numa promoção muito legal, de um grupo de telefonia (jabá o caralho!!) que apoiando a peça, manda os convites a pessoas cadastradas grátis. Chegando lá, pego os convites, o teatro super legal, abri o programa e vi que a peça contava a história de 4 mulheres e que foi escrita por uma mulher. A trama conta uma tarde, na vida das personagens que são interpretadas por quatro caras. Parei. Pensei. Vai ser uma merda.
Toca a campainha, baixa a luz, abre a cortina. Um pianista no canto solta uns teminhas e fará isso até o fim da peça, até mesmo tendo uma interação interessante. Entram os 4 caras. Sem afetação, vestidos de preto, "machos" acima de qualquer suspeita se descontarmos o salto alto. Não sei se falei, mas a peça é uma comédia. Apresentações feitas, cada um pega sua peruca, as roupas tem umas trucagens muito simples que "transformam" as roupas em trajes femininos.
Confesso, começou devagar. Ri com minha companhia, numas de não fazer desfeita, mas não é que a peça engrenou? Fui sacando uma sutileza de história meio incômoda. De rir de coisas sérias, não por cinismo, mas por perceber que tudo é muito introjetado socialmente a ponto de sendo sérias parecem ser bestas. A trama trata e fala dos dilemas da mulher de nossos tempos, de sua feminilidade, de maternidade, de envelhecimento, de carência, afeto, amor, sexo, de profissão e relações de trabalho com um deboche ferino. E os caras, mandam bem, caricaturas á parte, cumprem o papel e fazem o que bons atores fazem: te iludem. E fazem tão bem a ponto de rolar uns improvisos bem divertidos (nada a ver com improvisos sem graça que estão na moda).
Dado momento me pego pensando se as quatro mulheres são uma o reflexo da outra em momentos diferentes pois as personagens tem 30, 40 e 50 anos. Mas, isso é piração minha (ou não). Ao que parece a peça fica em cartaz mais alguns dias. Procure saber a operadora de telefonia que tem a promoção (pois eu nao vou dizer) e vá de grátis. Se quiser conferir você poderá ver que das duas uma, ou sou chato pra cacete, ou a peça realmente tem algo dizer.

4/17/2010

Chuva na cidade


Um trovão barulhento grunhiu no horizonte. Ele cobriu os ouvidos quando o relâmpago correu dando o aviso. A chuva o encharcava, os ventos eram como espíritos que não pedem licença e empurram corpos que não lhe apetecem possuir. Ele via o céu negro e pesado, com cores em tons chumbo. A calçada era sua e da água que lhe invadia os sapatos.
Um roedor morto servia de dique numa sargeta, empurrava o fluxo da água para o asfalto. Estava com a barriga inchada, cheio de vermes que pululavam em vida, comendo sua morte. Ele sentiu-se um pouco assim, como que inchado por dentro, deduzindo que tinha os intestinos cheios de rancores. Suas pernas doíam, a cabeça rodava, vendo as feições secas, os espíritos ralos que se escondem nas carcaças dos homens e em seus guarda chuvas que passam.
Sentou-se numa praça. Olhou um enorme monumento em bronze ser consumido do alto de seu olhar pedante e imutável, por resíduos de poluição que escorriam também para dentro dos pulmões Dele. Cansado. Encharcado. Corpo trêmulo de baixa temperatura. O mundo se comprimia em uma percepção reduzida a sua volta. Ele era uma bolha minúscula na praça, um cenário ordinário. Esticou as pernas, jogou a cabeça para trás, sentiu filetes líquidos entrando pelo nariz, pelos ouvidos, encharcando a barba. Uma de suas mãos segurava um papel e uma foto dentro do bolso. Seus dentes rangiam de frio, e de lembranças.
Uma viatura passa aos berros. É seguida por uma ambulância que quer superar o alarido e a velocidade. As sirenes são o cutucão que acordaria o bêbado que dorme no lugar indevido. Ele abre os olhos, se põe a andar. Na outra ponta da praça, uma Igreja Batista segue com seus cantos, um coral que inveja os anjos acima das nuvens, se lamuria lindamente em ladainhas de mil anos. Ele se coloca de frente para a porta. Um jovem negro, de camisa e gravata o convida para entrar. Ele balança a cabeça e sem expressar uma palavra, diz com os olhos que estava bem ali. Os hinários tem capas de letras douradas, e as vozes exprimem doçura, até neste que não vê Deus em criação alguma.
Antes que o pastor traga o sermão ele já está distante duas quadras. Os olhos ardem, em lágrimas, e na água suja do céu. Ele se depara com uma vitrine. Vê a si próprio no reflexo da vitrine. Pergunta a si mesmo. Inquire o reflexo que só faz repetir. Insatisfeito abre a mão espalmada e toca seu outro igual de vidro. A foto e o pedaço de papel viraram uma papa disforme. Ajoelha-se chora e a chuva começa afinar. Quando a respiração e o espírito se acalmam ergue-se. Anda, como se o tempo tivesse peso. Arrasta-se. Em frente ao prédio de apartamentos que ocupa, olha sua janela. Tira a gosma que foi papel e foto e são uma única massa agora. Joga num bueiro. Tira a chave do outro bolso, entra no prédio, sobe as escadas. Correspondências lhe aguardam amontoadas na porta, ele as empurra para dentro tão logo gira a chave. Ao entrar, o aconchego de seu mundo não nega o acolhimento. Fica nu na sala, para afundar logo depois na banheira quente no banho. O corpo relaxa. Depois com lamina e espuma permite a si mesmo aparecer, faz seu rosto a tempos escondido na barba vir ao mundo, mostrar quem é sem a mascara que carregou por tempo.
Do fundo do guarda roupa tira uma caixa. Desce as escadas. Numa pilha de lixo próxima de onde jogou a gosma de seu passado, abandona a caixa como que para alguém se afeiçoar e levar suas lembranças consigo. O céu esta limpo pois a chuva parou. Uma brisa leve o saúda. Amanhã é segunda e tudo começará de novo.